quinta-feira, 30 de junho de 2011

Airton Monte - Mero palavreado - 30 Junho 2011


Após tantos anos passados a mourejar diariamente neste meu cantinho de página de jornal, sei que já me tornei demasiado íntimo para aqueles que me leem com uma assiduidade até hoje um tanto quanto espantosa para mim.
Praticamente fui me tornando, para esses fiéis leitores, uma espécie de móveis e utensílios habituais em seu cotidiano. O que muito naturalmente me agrada e me dá forças e motivação necessárias para eu prosseguir levando à frente o meu suado ofício de cronista, apesar de todos os inevitáveis percalços e pesares, fazendo jus ao honesto dinheirinho que recebo no final de cada mês, garantindo assim o aluguel e a cervejinha das crianças. Ontem mesmo, recebi uma mensagem eletrônica de um jovem mancebo de apenas dezoito anos relatando-me gostar do que aqui escrevo e que, interessado em saber mais deste modesto escriba, andou pesquisando minha vida e minha “obra” no universo da Internet. Tal curiosidade partida de um jovem alegra meu curtido coração e me faz pensar que não escrevo ao vento.

Para meu gáudio, tenho leitores e leitoras de todas as idades possíveis e imagináveis, que ora me elogiam, ora me criticam com uma jovial sinceridade. Que mais pode almejar um escriba de província, possuidor de um modesto talento e um estro dos mais parcos? Também tenho a lúcida consciência de que me é impossível agradar sempre a gregos e baianos, e dou graças às volúveis musas de plantão por isso, porque acredito, como o genial Nelson Rodrigues, que toda unanimidade é de uma burrice esférica por sua própria natureza. Vou fazendo o que posso, tentando ser o mais aberto e sincero que consigo, dizendo realmente o que penso a respeito da sociedade em que vivemos, evitando tornar-me mais realista que o rei e dono absoluto da verdade. Despejo, muitas vezes sem parar para pensar com mais vagar, as muitas dúvidas e pouquíssimas certezas que me vão na alma. O mundo é vário e vasto, pleno de imperfeições, de injustiças e eu sou apenas um homem cuja arma é uma caneta, com a qual enfrento os moinhos de vento num romantismo quixotesco.

Para quem ainda não sabe, além de escrevinhar minhas “literárias” besteiras, também sou dado a cometer impunemente uns descompromissados versinhos para letrar canções geralmente feitas em parceria com amigos em mesa de bar. E, garanto que não foi por minha culpa, algumas composições de minha autoria foram até gravadas e, vez em quando, tocam na Rádio Universitária, o que me faz feliz, embora não possam falar o mesmo os incautos ouvintes. Considero-me um prosaico letrista bissexto como há escritores ocasionais, poetas circunstanciais e demais turistas das letras. Em certas ocasiões, me pergunto agoniado por que será que sou assim, um sujeito meio complicado, que tudo sei e nada sei de mim. Será que serei quem imagino que sou? Os espelhos me dizem que não, mas meu coração me diz que sou. E se sou, nada mais em mim será vão. As últimas frases acima não são, em hipótese nenhuma, autobiográficas, mas a letra de um blues que ousei intitular de “Pensando no Banheiro”.

Ao avesso do personagem da canção, sou um sujeito simples, de fácil convivência com meus semelhantes, mormente os do sexo feminino. Não paira sobre minha tosca fronde a auréola de mistério como tantos fazem questão de ostentar à guisa de suposta intelectualidade. Nada me define mais exatamente que a comezinha condição de homem suburbano, classe média aperreada, de gostos e prazeres banais. Apraz-me o trivial do bife com arroz, feijão, farofa e um ovo estrelado por cima coroando a mistura. Quanto ao dormir, tanto se me dá rede ou cama, porém vale ressaltar que uma rede branca de casal desperta-me pensamentos luxuriosos, concupiscentes. No que se refere ao de beber, quando podia, prefiro cerveja, fazendo exceção de luxo a um tinto de boa cepa, francês, italiano, espanhol, chileno. Defeitos os cultivo aos montões, apesar de quase todos serem de inofensiva pequenez, de igual quilate dos meus pecados, que de tão ínfimos, mais merecem a definição de pecadilhos. De qualidades e virtudes sou um poço raso, inclusive a minguada conta bancária. E não sou exigente nem comigo mesmo.

Airton Monte - Banca de Revista - 29 Junho 2011

Airton Monte - Banca de Revista - 29 Junho 2011


Claro é para mim, mesmo carregando uma eterna e edipiana culpa, sou daqueles raros filhos que confessam, com um certo pejo, haver amado muito mais o autor dos meus dias do que a minha santa e doce genitora. Talvez pelo fato das abalizadas opiniões familiares, desde a minha vó até minha irmã mais nova, ser dotado pela herança genética de uma personalidade demasiado semelhante à do maior filósofo já produzido pelo lírico território do Benfica. Apesar de vivermos nos atritando em infindáveis conflitos pela vida afora, havia uma poderosa identificação entre nós dois. Tínhamos os mesmos gostos musicais, literários, o mesmo apaixonado amor pelo futebol, o mesmo prazer em contar e ouvir histórias, a mesma alegria de compartilhar a companhia dos amigos nas rodinhas dos bares, a mesma fascinação pelo cinema, o mesmo temperamento explosivo quando pisavam nos nossos calos, o mesmo humor ciclotímico, a mesma paixão pelo mar, a mesma insaciável curiosidade pelos diversos personagens que faziam e fazem parte da história de nossa cidade.

E no longo e aventuresco capítulo das mulheres nem é bom falar, para não despertar os irascíveis ciúmes de minha amantíssima esposa. E por uma estranha e feliz coincidência, meu pai dedicava a meu avô o mesmo amor ambíguo e intenso que eu a ele igualmente dedicava. Por falta de encontrar uma melhor definição de tal fenômeno amoroso, diria que meu pai e eu partilhávamos do que chamo de coisas do sangue dos Monte. A mim me satisfaz, embora de maneira incompleta, tal simplista explicação de amar mais o pai do que a mãe e ponto final. Melhor deixar de lado, para não causar mais confusão em minha teimosa cabeçona chata, o Doutor Freud e todos os seus psicanalíticos compêndios. O afeto existente entre Dom Airton Teixeira do Monte e eu merece ser tratado como um caso à parte, que escapa à luz da razão como sói acontecer com as manias inexplicáveis do nosso coração. O que realmente importa é o que vivemos juntos enquanto ele esteve entre nós até sua viagem sem volta.

Engraçado é que, ultimamente, minha bem amada parideira dos meus desdobramentos celulares vive a me dizer, com insistente veemência, que a cada dia que se vai, vou me tornando cada vez mais parecido com meu pai. Não fisicamente, para meu inextinguível desgosto e cruel decepção. Meu pai era um homem muito bonito e eu, desgraçadamente, nasci possuidor de uma feiúra incomparável e minha triste figura só fez piorar com o passar do tempo. Estou mais para Jean Paul Belmondo do que para Alain Delon. Todavia, me considero um feio simpático, o que já é um grande consolo. Fala-me a amada que herdei de meu pai o idêntico jeito de sorrir, contar piadas, de fechar a caratonha quando estou com raiva, de ser viciado em banca de revista. Me lembro, inda menino, que todo fim de tarde era uma festa de incríveis descobertas. O pai chegava carregado de livros, jornais, magazines como O Cruzeiro, Manchete, Última Hora, o Jornal dos Esportes impresso num anêmico vermelho.

Ah, quanta poesia havia nos jornais e revistas daquele tempo. Tenho essa saudável atração por banca de revista. Vale a pena salientar que sou um comprador compulsivo. Acho legal esses tempos modernos. O que eu quiser saber sobre o que se passa no mundo está ali na banca de revista da esquina. Invariavelmente volto pra casa carregado, feito meu pai, de um alentado pacote de livros, de discos das mais variadas coleções. Além, é claro, dos indefectíveis jornais e revistas. Como só apelo pra Internet em última instância ou premido por uma inadiável necessidade, cada vez mais percebo que vou me transformando num homem feito de papel e tinta, constituído de palavras impressas, um degustador da linguagem. Diante de uma banca de revista, me sinto tal e qual um infante perdido em meio à Disneylândia. “O sol nas bancas de revista me enche de alegria e preguiça, quem lê tanta notícia?”. As bancas de revista são, sem sombra de dúvida, uma atraente espécie de fast food das ideias, um sanduíche de cultura facilmente digestível, a batatinha frita da informação.



Airton Monte - Ode ao Silêncio - 28 Junho 2011

Como sempre uma crônica perfeita!!!

Airton Monte - Ode ao Silêncio - 28 Junho 2011


Se existe uma coisa com a qual não consigo me conformar, por mais que eu tente denodadamente nos últimos tempos, é com a barulheira caótica, ensandecedora e infernal que assola esta cidade em que sobrevivo, transito e me morro de amores. E o que é pior, não tem hora nem dia para começar o diabólico pandemônio. Tanto faz se é de manhã cedo, de tarde, no começo da noite ou até mesmo altas madrugadas. Pouco importa que estejamos em pleno feriado, um sábado, um domingo. Parece que a palavra silêncio foi sendo paulatinamente riscada do mapa do respeito ao sossego do próximo e do distante. Não há ouvido humano capaz de suportar a zoadeira generalizada que estoura, sem dó nem piedade, os sofridos tímpanos dos habitantes desta metrópole sem dono, tiranicamente dominada pelos malditos paredões de som que infernam a vida de quem nela habita de modo duradouro ou provisório.

Portanto, acima de tudo que me cerca nesta minha para sempre amada Loura Desposada, banhada pelo sol equatorial, a mim me resta um único e desesperado apelo que ora lanço aos ares como uma branca bandeira de trégua em meio a essa batalha citadina. Premido, imprensado entre o sossego e o desassossego, agoniadamente imploro: silêncio, pelo amor de Deus e de todos os santos. Silêncio, eu encarecidamente suplico. Só um bocadinho de silêncio é que o que peço agora. Será demais ou um vão e inútil pedido desejar um pouco de silêncio para que eu possa ouvir, sem interferências pandemônicas meus próprios, vadios pensamentos? Acredito que não. Afinal, numa cidade modestamente civilizada, em que ainda reste um resquício de indispensável gentileza, todo e qualquer cidadão possui o sagrado direito a um pouco de silêncio, por mínimo que seja, para ser, vez em quando, um Robinson Crusoé de si mesmo, sem a companhia de um Sexta-Feira e sem radinho de pilha na tranquilidade do seu lar.

Sim, evidente que concordo inteiramente com a célebre frase de um autor cujo nome nesse instante me escapa a minha não tão confiável memória: nenhum homem é uma ilha. Porém, o que me custa tentar sê-lo uma vez ou outra quando assim bem o desejar e carecer? Ah, que imensa falta me faz o silêncio por demais benvindo nessa tarde tão bela, que tinha tudo para ser de uma calma ansiolítica, quieta, mansa, suavemente recoberta por uma vestimenta silenciosa como uma cadelinha domesticada. E não é. Infelizmente, há demasiado barulho ao meu redor. Vozes que ressoam alto dentro dos bares vizinhos, buzinar atordoante dos carros, aparelhos de som estrondeando as insuportáveis trilhas sonoras de um estúpido mau gosto, uma babel de irritantes cacofonias que minhas sambadas oiças já não são capazes de suportar até que me atinja a surdez definitiva, irreversível. Não duvido nada que haja baixado em mim um espírito de eremita e tudo que é humano me parece estranho, exceto o toquetoque das teclas do computador.

Entanto, onde exilar-me na cidade que ora sim, ora não, sinto que não mais me pertence? Nada do silêncio estéril das catacumbas, da solidão dos cemitérios. Mas o silêncio poético de quem anseia encontrar-se consigo mesmo. Da espreguiçadeira instalada no alpendre observo a vida miúda das formigas laborando, incansáveis, no espaço do quintal, onde algumas plantinhas teimam em brotar nas frestas do cimento. Também procuro ao longo dos telhados o grande gato gordo que não mais os povoa, a caçar pombos invisíveis. Somos tão iguais eu e o desaparecido velho gato grande, gordo, imersos na tarde morna que tinha tudo para ser calma, quieta, mansa, suavemente silenciosa e que assim não é. Enfim descubro tristemente que o silêncio por mim desejado é impossível de obter nessa urbe barulhenta e bárbara. Que saudade me dá do suburbano silêncio da minha louca mocidade, tão pacificamente prenhe de segredos, sossegos e maravilhosos mistérios.


quarta-feira, 29 de junho de 2011

Airton Monte - Endereço errado - 27 Junho 2011



Em pleno feriado de Corpus Christi, a manhã apareceu no céu parquelandino com a cara estremunhada de sono, pachorrenta, nuvens chuvosas toldando o horizonte. O sol mostrando, para minha irritação, uma aparência tímida, diria mesmo preguiçosa, feito um Macunaíma celestial. Engraçado, nos feriados costumo despertar mal os primeiros raios solares brotem, apressados, atravessando as frestas da cortina que vela a janela do meu quarto de dormir. Manias do meu cronometro biológico, mesmo que eu tenha permanecido acordado até alta madrugada, premido pelas garras impiedosas da insônia ou simplesmente assistindo a um filme de aventura na televisão, lendo, rabiscando besteiras no meu caderno de apontamentos, pensando nos imponderáveis acontecimentos do amanhã. Toda véspera de feriado, já sei que tenho um inadiável encontro marcado com o raiar do alvorecer, quer queira, quer não, esteja doente ou gozando de higidez.

Levantei-me da cama num pulo só, ágil como um felino, exageros à parte. Dei um prolongado mergulho em minha piscina vertical, que o vulgo chama de chuveiro, tomei o café da manhã, folheei os jornais do dia, fui até a caixa dos correios verificar a correspondência. Por entre o amontoado de boletos das contas costumeiras, cujos envelopes nem cheguei a abrir para evitar possíveis aborrecimentos e preocupações, deparei-me com um folheto bem impresso que me provocou, após lê-lo, uma espantosa surpresa. A princípio, pensei que os remetentes haviam errado de endereço, porém ao ver meu nome impresso no alto do papel, dissiparam-se todas as minhas dúvidas. Parece mentira, todavia valeu o ancestral ditado que afirma verazmente que de onde menos se espera é que sai. E saiu. Imaginem vocês que uma otimista construtora mandou-me um afável prospecto publicitário repleto de atraentes promessas, dessas de encher os olhos e acender os desejos consumistas de qualquer cristão, inclusive dos mais desconfiados.

O atraente e multicolorido informe me passava a seguinte cantada, que à medida que o lia, ia perdendo paulatinamente o interesse: “Caro médico, a dedicação e o empenho são condições imprescindíveis ao bom exercício de qualquer profissão. É o caso da Medicina, que exige uma entrega total, por isso, oferecemos a você excelente oportunidade de comprar o apartamento de seus sonhos”. Ao depois, colocava a minha inteira disposição três supimpas produtos imobiliários localizados em áreas valorizadíssimas do nosso alencarino balneário. Um flat na Praia de Iracema e dois fascinantes apartamentos no coração da Aldeota, um dos quais com quatro principescas suítes, varanda do tamanho do meu quintal, banheira de hidromassagem e demais luxuosos embelecos. Das duas, uma. Ou a construtora ostenta uma santa ignorância quanto à penúria generalizada da maioria dos Hipócrates tupiniquins ou tem um senso de humor negro capaz de matar de inveja o próprio Zé do Caixão.

Quanto custa um desses sonhos oferecidos? Por baixo, uns trezentos mil reais o mais baratinho. Ora, para mim, trezentos mil reais é uma ruma de dinheiro que gente besta não conta. Data vênia, penhoradamente agradeço a honorável lembrança. Acaso papasse a mega sena sozinho, garanto que compraria, num impulso megalomaníaco, logo um prédio inteiro, só pra ser simpático com quem me foi tão gentil. Sem falar no meu sonho recorrente de um sobradinho azul e branco à beira mar plantado numa praia paradisíaca. Nada mal seria pra quem morou a existência inteira de aluguel, carregando, vez em quando, a casa nas costas feito um caramujo. Aliás, uma imprescindível despesa que o generoso Governo Federal não me permite abater da extorsão anual do imposto de renda. Como se salário fosse renda, pois sim. Ah, amigos meus, sou um pobre. Não se trata, de nenhum modo, de queixumes e lamentações gratuitos. Apenas uma óbvia constatação. Nem adianta tentar me consolar com a furada desculpa de que não fico rico porque não quero. A legítima verdade é que jamais enriqueci porque não sei e porque não posso.



Airton Monte - Questão de gosto - 24 Junho 2011

Airton Monte - Questão de gosto - 24 Junho 2011


Não querendo, de modo algum contar vantagem, é um fato raro, diria até mesmo incomum em meu diário lavor de humílimo cronista de província, tentar iniciar uma crônica sem saber por onde começar. Todavia, de quando em vez tal percalço sucede me acontecer. Como ocorre hoje, neste exato momento em que me encontro curvado sobre minha mesa de trabalho. Pois é, são os chamados ossos do ofício. Aliás, esse labor de ter que escrever todos os dias, faça sol ou chova canivetes, é uma sofrida, suada ocupação que não recomendo a seu ninguém, inclusive aos meus poucos dissidentes afetivos, por mais males que eles possam, pensem haver me causado ao longo do tempo. Como costumo repetir em minhas falações, melhor dizendo, em minhas escrevinhações, há dias em que a crônica nasce de parto normal, com uma espantosa naturalidade. Em outros, vem à luz na base do fórceps, depois de inaudito esforço. E em determinadas ocasiões, o parto só chega a seu término apelando para o recurso último da cesariana.

Cansado de tanto bater em inúmeras portas trancadas a sete chaves à procura de um assunto que me salvasse a pátria, acabei bancando um reles ladrão arrombando uma delas usando o pé-de-cabra da vontade, antes que o desespero me assaltasse de todo. Feito um péssimo caçador, de mira descalibrada, atirei no que vi e acertei no que não vi. Brotou-me no exausto bestunto a não muito original ideia de escrevinhar a respeito de velocidade, vendo um comercial de carros na televisão, entre uma e outra telelágrimas. Daí, pensei cá com meus surrados botões, apesar de saber de cor e salteado que alguns de meus leitores(não muitos, assim fervorosamente espero) vão me esculhambar do primeiro ao quinto, ao insistir em falar sobre o tema escolhido: corrida de automóvel. Os adeptos desse “esporte” sapecar-me-ão perversas injúrias, chegando ao cúmulo de atentar contra a moral e os bons costumes de minha finada mãe e da minha senhora.

Entanto, como minha vida é um livro aberto, embora escrito em branco, não posso escusar-me de expor minha pura e límpida opinião e seja lá o que Deus quiser. Por incrível que pareça, sou um daqueles néscios que ainda teimam em usar e abusar da sinceridade, nem que me custe caro, pois gosto de olhar minhas encanecidas fuças no espelho sem resquícios de pejo. Existe em mim uma inamovível ojeriza à corrida de automóveis, a qualquer corrida de semoventes, aliás. Está acima da minha humanamente imperfeita compreensão sentir a mais anêmica emoção em ficar durante horas diante da telinha, galopantemente eletrizado por uma vaquejada motorizada. Onde a máquina torna-se mais importante do que o homem. Onde um piloto de terceira num carro de primeira consegue vencer um piloto de primeira num carro de terceira. Definitivamente não sou admirador de carros desde menino, nem mesmo de um prosaico caminhãozinho de lata. Automóvel só me desperta interesse como meio de transporte, pra facilitar-me o direito de ir e vir, mais nada além disso.

Nas corridas de carro, a viatura é que é, sem sombra de dúvida, a única e verdadeira estrela do espetáculo. É como, mal comparando, se no futebol a bola fosse mais importante do que o craque, inda que sem ela seja impossível jogar. E o que é pior, inimaginável, como se um Zagallo turbinado saísse pelo gramado afora dando dribles de um Garrincha. Qualquer criação do homem, por mais maravilhosa que seja, é sempre menos importante do que o homem que a criou. Outrossim, tenho de render-me às evidências da arquétipa máxima de que questão de gosto não se discute. As corridas de automóveis existem. Dominam a mídia e fazem parte essencial de um imenso mercado onde a grana jorra farta enchendo os bolsos dos pilotos e dos donos do circo. Há quem goste delas apaixonadamente do mesmo jeito que eu amo o futebol. Das corridas de veículos gosta-se ou não e pronto. Eu, particularmente, detesto-as. Nenhuma emoção por mim perpassa ao sentir por um longo par de horas os carinhos de um motor. É ou não é, meu caro Belchior?

Airton Monte - Canção antiga - 23 Junho 2011

Genial crônica!!!!! perfeita!!!

É meia–noite em ponto. Assim me diz, pontual feito o Big Ben da Loura Albion, o grande relógio oval dependurado no alto da parede branco-azulada do quarto, os negros ponteiros cruzados um sobre o outro, entrelaçados como num abraço. E mesmo sem querer acreditar que as horas passaram tão rápidas em sua noturna jornada, a única coisa que me resta fazer, mesmo contra minha vontade, é ter de simplesmente acreditar no que meus cansados olhos veem. Quem de nós, a pergunta tola, néscia me vem à mente, vai se arriscar, em sã consciência, a encetar uma perdida briga contra o tempo? Apesar do oscilante movimento do pequeno pêndulo do relógio, o tempo não brinca de vai-e-vem. Apenas segue em frente, impassível, imperturbável, insensível com tudo que vai deixando para trás em sua marcha de eterno andarilho. Não faz curvas nem desvios de rota, pois caminha no rumo da venta, seguindo as trilhas imprevisíveis do que, por falta de nome mais suave, chamamos de amanhã ou de futuro.

É. Pois é. Tal e qual está escrito na bela canção de Gonzaguinha, tantas vezes por mim ouvida em tantos momentos de minha passagem por este mundo velho sem porteiras: “Vida, vamos nós e não estamos sós”. Será essa uma lídima verdade? Em certas ocasiões, chego a duvidar das palavras do poeta. Bem podemos não estar sós por todo o tempo, mas aqui e ali, quem sabe? Pronto, cá estou novamente a falar de solidão paulificantemente repetitivo feito um disco arranhado. Que nem eu fosse um pobre coitado de um solitário profissional. Basta um ligeiro descuido, por um instante que for, e o tema começa a pingar da ponta da caneta qual um fiozinho d’água de uma torneira quebrada, um cricrilar irritante de um grilo escondido debaixo da escuridão da cama. Meia Noite. A Hora Grande, mãe de todos os medos e inquietações, em que todos nós viramos crianças amedrontadas, com vontade de chamar pela mãe, para que ela acaricie suavemente a nossa face afastando nossos pavores noturnos para bem longe e nos faça adormecer com as cantigas de ninar da infância.

Meia Noite. Lua cris. Até parece que vejo fantasmas povoando o escuro. Mas são fantasminhas camaradas, de longa e íntima convivência, perfumados de jasmins. Dos jasmins inesquecíveis que minha vó plantava em seu pequeno jardim da casa modesta de uma ruazinha suburbana. É Meia Noite e escrevo solitário, mas não tanto que chegue a roubar-me a calma e essa ingênua pacificação dos sentidos que julgamos duradoura. Na verdade, eu sempre senti-me tão só que findei por habituar-me à solidão como quem se habitua com o calor do sol e a luz de uma estela que nos acompanha existir afora. Para mim, a solidão nunca foi motivo de drama, de tragédia nem sinônimo da impossibilidade de conviver com meus semelhantes. A solidão, aprendi cedo, é uma vestimenta que eu ponho e dispo quando me dá vontade. Porém, tomo meus cuidados ao vesti-la para que não corra risco dela grudar-se no meu corpo definitivamente como uma segunda pele. Solidão é roupa de passeio, não para se usar em casa, rotineiramente.

Que saudades de meu pai que, a esta hora, deve andar bebendo, jogando conversa fora com amigos nos etéreos botequins dos Campos do Além. Também me bate um impulso de telefonar para o bom amigo Erle Rodrigues e trocar algumas poucas, mas agradáveis palavras. Infelizmente, ele não faz parte do insone Clube dos Corujas e fico com receio de incomodá-lo. Afinal, passa de meia noite, a madrugada saiu dos cueiros. O Erle, naturalmente, deve restar no mais completo, merecido repouso do sétimo sono. E, aqui entre nós, que direito tenho eu de incomodar os amigos a esta hora tardia? Sim, estou sozinho no alpendre do quintal, vigiando o voar das mariposas em torno das lâmpadas dos postes, ouvindo Miles Davis. E daí? Estou crescido, um sujeitinho de sessenta e dois anos e todo o resto da vida pela frente. Neste momento, nada disso tem importância. Começo a tecer novas palavras enquanto a noite prossegue. Um dos demônios que me habita aconselha-me que me embriague. Saída muito fácil. Prefiro encarar a solidão de frente que nem um sapo engolindo um cigarro aceso.



Airton Monte - Dom Juan Espacial - 22 Junho 2011

Airton Monte - Dom Juan Espacial - 22 Junho 2011


Histórias há. E quem as conte, mesmo as mais inverossímeis, que fogem ao ritmo natural das coisas, beirando, muitas vezes, às fronteiras do fantástico, dessas em que somente são capazes de acreditar aqueles dotados de uma pétrea credulidade. Claro, existem os inabaláveis céticos de plantão para compor o indispensável contraponto, os São Tomés que somente creem no que podem tocar e ver, em cuja mente não recebe qualquer guarida tudo o que se encontra além da comezinha realidade do mundo em que vivemos. Para os escritores, graças ao bom Deus, os crédulos superam os céticos por uma benfazeja e esmagadora superioridade numérica. Do contrário, o que haveria de ser de nós que sobrevivemos de contar histórias por vocação, ofício, profissão. Histórias há, em saudável demasia, espalhadas por aí, contadas boca a boca ou saídas da fértil imaginação dos escribas. As histórias devem ser contadas de qualquer maneira, dirigidas a qualquer plateia. O fato de serem críveis ou não trata-se apenas de um mero detalhe.

Cá entre nós, meus caríssimos leitores, falando com sinceridade, quantos de vocês acreditam piamente, sem lhes restar a menor dúvida, na propalada existência de seres extra-terrestres, tão presentes no imaginário popular? Relatos inúmeros sobre o aparecimento de discos voadores nos lugares mais inusitados do nosso planetinha se tornaram tão frequentes e habituais em nosso dia a dia, que já nem provocam espanto em quem deles toma conhecimento. O velho Moita, que andou sumido por um tempo, tirando férias como personagem das minhas croniquetas, achou de reaparecer como se houvesse surgido do nada. Exagerado como sempre o foi, não só crê em extra-terrestres, vai muito mais além. O profeta do Benfica garante existirem três tipos de vida:terrestre, extra-terrestre e intra-terrestre. A primeira é a que se leva na superfície terráquea. A segunda é quando a gente bate as botas, vira alma, vai para o céu ou pretinho pro inferno, sem sequer uma paradinha no limbo.

A vida intra-terrestre, segundo o nosso gentilandino Nostradamus, se daria bem exatamente no interior mais profundo do nosso globo. Por lá, uma estranha, ancestral e misteriosa raça de criaturas, até hoje jamais vistas, viveria confortavelmente num paraíso subterrâneo, situado sob as eternais geleiras árticas. A entrada mui secreta, nunca descoberta desse fantástico mundo estaria localizada quase vizinha ao esconderijo do Abominável Homem das Neves e parede e meia com a fortaleza do Super-Homem. Quer se trate ou não de mais uma maluquice do Moita, garante ele que muita gente boa leva o tema em pauta muito a sério, de acordo com o que mostram as suas profícuas investigações. E não há quem o demova dessa ideia, mesmo usando argumentos de comprovado valor científico. E não sou eu quem vai perder tempo em tentar convencê-lo do contrário, abalando suas siderúrgicas certezas a respeito do controvertido assunto.

Aqui no Ceará, a ufologia alcançou uma merecida reputação internacional. Faz tempo que os alencarinos sertões viraram o passeio intergaláctico preferido de nove entre dez turistas espaciais. O Seu Jaborandir, por exemplo. Próspero proprietário de uma rede de suburbanos mercadinhos, faz questão de dizer-se um ufólogo pelo avesso. Para ele, esse negócio de extra-terrestres não passa, em última hipótese, de uma grande enrolação, conversa pra boi dormir, historinha de trancoso. Até que sua adorada caçula apareceu ligeiramente grávida, jurando por todos os santos que o autor da proeza, o verdadeiro pai da criança, é um ET. Evidente que ao saber do surpreendente evento, Seu Jaborandir, na mesma hora, mudou de opinião, virando a casaca. Agora vive se gabando que vai ser avô do primeiro espécime de uma futura raça intergaláctica. Mal sabe o pobre homem que o decantado noivo e futuro genro atende pelo nome de Ubirajara Trozobão, taxista dos bons, que ainda não assumiu compromisso mais sério com a moça por já ser casado em Marte e amancebado em Plutão.


Airton Monte - Perigos do celular - 21 Junho 2011

Embora não tenha tanto apreço e apego ao telefone, não sou eu quem vai deixar de considerá-lo uma das maiores invenções já criadas pela humanidade. Para mim, o invento de Graham Bell está na mesma categoria com que trato os carros. Trata-se apenas de um objeto útil e prático a facilitar as atividades, as tarefas necessárias ao desenrolar do meu cotidiano, tanto no trabalho como nas relações de amizade. Sem a utilitária engenhoca, como chamar um táxi em uma noite de chuva torrencial em que você precisa ir a algum lugar onde é esperado para um compromisso inadiável? Como ligar para a polícia no caso de um ladrão andar rondando a sua casa? Marcar uma consulta médica, pedir o urgente socorro de uma ambulância? Combinar um sorrateiro encontro de amor? Bloquear o seu cartão de crédito quando você o perde ou lhe foi roubado? Como saber se seus filhos estão passando bem ou se meteram em alguma enrascada quando batem as asas para longe do ninho doméstico?

O telefone, feito qualquer máquina, tem lá as suas qualidades e suas inevitáveis aporrinhações. De repente, você está merecidamente aninhado nos braços de Morfeu, depois de um longo e exaustivo dia de trabalho e no meio da madrugada ouve o metálico tilintar do telefone. Você acorda estremunhado, os olhos ainda pesados de sono, sai correndo da cama, pensando agoniado que só pode haver acontecido uma tragédia e ao tirá-lo do gancho, finda por se deparar com um maldito trote ou a voz de algum bêbado pedindo trôpegas desculpas por uma ligação errada. Nessas horas, chega a borbulhar em mim um desejo assassino de estraçalhar o desgraçado do outro lado da linha que acabou de furtar o meu sossego impunemente. Sem falar na praga inextinguível dos vendedores telefônicos que insistem em lhe oferecer serviços e produtos que você não pediu nem está interessado em adquiri-los, seja quais forem os prêmios, facilidades de pagamento. Verdade seja dita: o telefone acabou, de uma vez por todas, com o precioso bem da privacidade.

Todavia, há de se convir ser o telefone um poderoso e eficaz remédio a ser usado para combater a solidão mais desalmada que pode acometer qualquer cristão quando menos esperada. Você está solitário, imerso em pensamentos prenhes de um doloroso negativismo, com vontade de pular fora do mundo na próxima parada, achando, por vezes com razão, que a sua vida é uma merda sem tamanho e que não mais vale a pena continuar remando contra a maré. E, súbito, o telefone toca e você ouve a salvadora voz de um grande amigo como uma bendita boia lançada a quem está prestes a afogar-se num mar de cava depressão. E você recupera prontamente o ânimo perdido conversando sobre suas desditas momentâneas ou duradouras, desabafa as suas mágoas, os seus queixumes aos ouvidos pacientes, tolerantes, generosos do amigo que lhe telefonou na hora agá, como se adivinhasse que você está mais do que dele precisado. A amizade detém esse mágico poder de ressuscitar os infelizes que estão se finando de tristeza feito uma planta que se fana num canto esquecido de jardim.

Por falar em telefone, eis que a prestigiosa e respeitável Organização Mundial de Saúde acabou de lançar um amedrontador aviso aos navegantes, alertando para os possíveis perigos causados pelo uso demasiado frequente dos celulares. Os populares aparelhinhos foram classificados como letais portadores de um potencial cancerígeno, devido à radiação que emitem. Os celulares, segundo apurados estudos científicos, são comparados ao chumbo, ao amianto, ao tabagismo, aos vapores de gasolina. A radiação do celular pode cozinhar o cérebro tal e qual um forno de micro-ondas faz com os alimentos. Ao saber da infausta notícia, liga-me, agoniado, o meu irmão Carlos Augusto Viana, sequioso de mais informações. Apesar de imortal pertencente à Academia Cearense de Letras, o poeta anda bastante preocupado, pois é dono de seis maquininhas, sendo usuário exagerado de todas elas, muitas vezes ao mesmo tempo. Calma no Brasil, meu poeta, pois tais estudos são considerados inconclusivos. Felizmente, não será dessa vez que entrarei na sua vaga pelos acadêmicos portais.



Airton Monte - O clube da Esquina - 20 Junho 2011

Literatura pura e de qualidade - brilhante!!!


Airton Monte - O clube da Esquina - 20 Junho 2011



Sim, meus perclaros e indispensáveis leitores. Digo que sim sem mais delongas e deletérias tergiversações, pois tenho cá os meus cuidados para evitar-lhes o abuso da generosa paciência e tolerância com que acolhem estas minhas cotidianas mal traçadas. Leitores assíduos, de indiscutível bom gosto estão se tornando demasiado raros hoje em dia, que quando um autor os encontra, faz-se preciso cultivá-los como flores exóticas em seu jardim de palavras, agradecendo penhoradamente aos céus pela bênção de tê-los. Os leitores pedem. Pedem, não. Antes exigem, acima de tudo, uma total sinceridade de quem escreve. Uma sinceridade suicida, sem vestígio de mentira, sem o covarde artifício do subterfúgio e a solerte artimanha dos eufemismos. Nada de fingir o que na verdade não se é, criando uma falsa imagem destinada apenas a enganar, ludibriar aqueles que gastam seu precioso tempo lendo o que você escreve numa página de jornal. Ao leitor não se engabela impunemente durante muito tempo.

Na esmagadora maioria das vezes, os leitores são muito mais inteligentes do que os escritores. Eis uma preciosa lição que bem cedo aprendi com mestre Moreira Campos. Portanto, inútil e vão tentar subestimá-los. Pois muito bem. Como nasci no século passado, sou do tempo em que todo adolescente mais ou menos normal pertencia a um Clube da Esquina da rua onde morava. Eu também tive o meu, confesso eivado de um juvenil orgulho. E não pensem vocês que se tratava de uma esquinazinha qualquer, sem nenhum significado histórico no decorrer de minha breve existência. Estou falando da épica, olímpica, epopeica Esquina, com E maiúsculo, da rua Dom Jerônimo com a velha Avenida Carapinima, hoje chamada de José Bastos. Situada, por sinal, em frente à casa do lendário Zé Brasil, boêmio inveterado, mas um mui laborioso funcionário dos Correios e Telégrafos, que chegou a ser técnico do saudoso time do Nacional Esporte Clube, eterno disputante à lanterna do campeonato cearense de futebol, na época em que as galinhas ciscavam pra frente.

Tornar-se um frequentador contumaz da esquina, principalmente ser aceito pela turma que mandava e desmandava na esquina como um igual era um decisivo ritual de passagem da infância para a adolescência. Além de revestir-se de uma fascinante auréola de rebeldia, uma indispensável afirmação de macheza e prova incontestável de virilidade. Afinal, da esquina para o popular cabaré da Dona Estênia era um pulo, nas noites eróticas dos sábados. Sem falar que na esquina acontecia quase tudo de importância em nossas vidas. Desafios, brigas, reunião antes das peladas no campinho da Igreja dos Remédios, ensaio das serenatas e muita, muita esculhambação. Graças a Deus, só fui obrigado a ir á Brasília uma única vez em meu inteiro existir e, que, felizmente espero haja sido a última. Brasília, uma cidade sem esquinas, mãe de todos os tédios urbanos. Espanta-me que Niemeyer, um apaixonado pelas curvas, tenha criado uma cidade desprovida do encanto das esquinas. Jamais viveria em Brasília, pois decerto morreria em meio a uma agoniada solidão.

Para nossos pais, a esquina não passava de um veraz antro de perdição. Mal sabiam eles o quanto a esquina nos era vitalmente necessária. Como também não deviam perceber que, paralelo ao mundo deles, oficial, fervia um outro mundo meio marginal. Com suas regras próprias, suas leis, sua hierarquia, seus prêmios, seus castigos, sua linguagem, seus hábitos, seus costumes, sua ética, sua moral, seu sistema de poder. Na esquina tudo era permitido. Quanto mais proibido, melhor, menos chorar pra mãe ouvir, quando o sujeito levava uma mão de peia. Em verdade, a esquina nos dava, por bem ou por mal, uma identidade novinha em folha. Na esquina, enfim, éramos alguém, uma pessoa. Deixávamos de ser apenas o filho de Fulano, Beltrano, Sicrano. Talvez, por isso mesmo, todos nós cultivávamos um apelido, um nome de guerra, um secreto codinome. Fazíamos parte de um grupo, de uma turma, de um bando, de uma tribo. Pois é. Quanta saudade em mim pulsando da esquina sem perigo de ladrão atrás da curva. Sabe lá das esquinas por onde andei. Sabe lá, como canta o Djavan.

Airton Monte - Para Sônia - 16 Junho 2011




Bela dedicação de Amor- peculiar aos poetas


No Dia dos Namorados apenas namorei, como deve ou deveria ter feito todo namorado. Não porque assim manda a comercial data marcada nos calendários. Namorei porque simplesmente me deu vontade. Logo de manhã cedo, minha mulher, num repente amoroso, tascou-me um sôfrego beijo na boca como há muito não fazia. Surpresa mais deliciosamente agradável há tempos não tinha nem esperava ter em pleno amanhecer de domingo. Nos beijamos, nos abraçamos e só não conto todo o resto que fizemos por haver solenemente jurado guardar segredo, levando os dedos indicadores trançados em forma de cruz aos lábios. Mantendo a tradição, Dona Sônia ofertou-me, além do saboroso carinho, um disco do Chico Buarque de Holanda, saciando-me o corpo e o espírito. Cá por mim, no meu habitual esquecimento, nem me lembrei que era o Dia dos Namorados. Restei-me com cara de tacho e afora as ardentes carícias, nem lhe dei presentes, fosse joia, vestimenta, uma caixa de chocolates sortidos, um livro de Fernando Pessoa. Sequer lhe escrevi um poema, mesmo que fosse um mísero soneto de pé quebrado.

Fervendo de raiva não me ficou a eterna namorada, pois já conhece de cor e salteado todos os meus inumeráveis defeitos. Também pudera. Estamos juntos desde que tínhamos uns verdes, viçosos dezesseis aninhos de idade e sonhávamos todos os sonhares possíveis e impossíveis. Alguns foram gratamente, prazerosamente realizados. Outros tantos ficaram no plano do onírico. Estamos casados há exatos trinta e seis anos. Completamos, pelas minhas duvidosas contas, bodas de sei lá o quê, meu bom Deus. E eu fiz dois filhos nela com todo amor de que sou capaz. Nossa vidinha em comum nem foi um constante piquenique nem um duradouro vale de lágrimas, porque fomos e somos o que tínhamos de ser um para o outro. Em tom de brincadeira, costumo dizer que tenho a inenarrável sorte de ser um homem muito do bem casado. Nenhuma culpa me cabe se minha mulher é mal casada. Sônia é minha cruz amada, porém uma cruz diferente. Ao invés de carregá-la, é ela quem me carrega existência afora. E me diz, galhofeira, com a castanha luz dos olhos seus brilhando, que sou o seu mais doce madeiro.

Poderíamos, nesse doze de junho, ter fugido de casa, só nós dois, a namorar por aí, caminhando pelas ruas de mãos dadas, até chegarmos numa pracinha modesta, mas acolhedora, polvilhada de flores de todas as cores e diante dos olhares espantados dos passantes, a gente se beijaria longamente, despudoradamente como quem descobriu o amor recentemente. Não, ela me disse. Nada de ficarmos completamente isolados do mundo. Antes dividi-lo, vivê-lo, compartilhá-lo com os outros namorados como se reparte um pão, cada um de nós sendo cada vez mais cada um e assim mesmo, nos tornarmos inseparavelmente unos como sempre o fomos. Decidimos não sair do nosso amoroso refúgio para nenhuma comemoração, como se o Doze de Junho não passasse de um dia qualquer, comum, rotineiro e, ao mesmo tempo, dotado de suma importância por ser mais um dia que vivemos juntos. E um dos muitos que ainda viveremos como se fossem os primeiros.

Nós dois aprendemos, não sei se tarde demais ou muito cedo, que amar não significa anular-se diante do outro. Desistir do nosso Eu, amoldar-se, feito uma massa plástica e informe, à ideia e semelhança do outro. Amar, me sussurrou a amada, é entregar-se, é dádiva, ofertório, oferenda, jamais um suicídio do Ego. Quão sábia é minha mulher, ao me falar tais palavras. Falou-me, ainda, que o amor exige um tantinho que seja de mistério, sedução, surpresa, encantamento, espanto, descoberta. E assim, eu e minha namorada avançamos pelo dia adentro, vivendo com intensidade de pura chama o que nos foi sendo dado viver. Nunca existiu, entre nós, receio algum de cruzar essa balouçante ponte entre dois abismos a que chamamos de amor. Falamos do nosso passado com bem humorada saudade das loucuras que fizemos. Falamos do presente e das loucuras que fazemos. E ao chegarmos no imprevisível capítulo do futuro, ambos emudecemos e nos beijamos outra vez como fazem os namorados assim na terra como no céu.

Airton Monte - Pastor Caninha - 15 Junho 2011

Airton  Monte - Pastor Caninha - 15 Junho 2011

Por experiência própria, pois fui uma das mais insaciáveis goelas da boemia alencarina, um voraz bebedor de cerveja em doses industriais, dos vinte aos sessenta anos(o que findou por me custar muito caro)sei o quanto a bebida é capaz de alterar o comportamento das pessoas para melhor ou para pior. Geralmente para pior, com toda segurança afirmo. Além do mais, quando se fica bêbado, nos tonamos o território do imprevisível e seja lá o que o diabo quiser. Claro, evidente que há quem fique manso, pacífico feito um monge tibetano, não fazendo mal nem à bebida que bebe. Cordial, afável, educado, gentil feito um lorde inglês. Alegre, jovial que nem um carnavalesco de escol, animando qualquer festa, qualquer ambiente por mais funéreo que seja. Contudo, há quem se torne raivoso, hidrofóbico, exalando agressividade por todos os poros, soltando seus demônios enfim libertos pra cima do primeiro que aparecer-lhe à frente, mesmo seu melhor amigo.

Acaso estiverem ao volante, transformam-se em possíveis assassinos, causadores das mais terríveis catástrofes no trânsito. Sãos os “motorristas”, uma explosiva mistura de motorista com terrorista. Outros restam desconfiados de tudo e de todos, uns verdadeiros, perigosos paranoicos. Os ciúmes lhes tomam a alma por qualquer dá cá aquela palha e suas mulheres são quem acabam pagando o pato, mesmo sem motivo. Alguns se deixam tomar por um súbito acesso de cava depressão, com choros incontidos, queixumes , lamúrias intermináveis, lamentando ainda estar vivo, fazendo a insuportável propaganda de que o suicídio lhes seria a melhor saída. Tais tristes etílicos baixam o astral daqueles que tiverem a suprema infelicidade de lhes ficar por perto. Isso sem falar nos inevitáveis chatos de galocha, que se tornam os donos do palavreado, não permitindo mais ninguém falar, contando piadas sem graça, cometendo peripécias daquelas de acabar até festa de debutante.

O álcool é uma droga bastante perigosa, talvez o mais ensandecedor de todos os baratos já craneados pela humanidade em sua busca incansável do prazer ou da fuga da tal de realidade. O Otacílio Perobão, de quem já contei algumas aventuras, um gayzão de dois metros de altura por uns quatro de largura. Porém, quando toma umas biritas, vira um empedernido machão, capaz da suicida coragem de, num domingo de clássico, ir para o meio da torcida do Ceará, todo maquiado, fantasiado de Carmem Miranda e, ainda por cima, em desafio ousadíssimo, envergando o glorioso manto do meu, do seu, do nosso mui amado Tricolor de Aço. Ah, quão insondáveis são os mistérios da humana alma, que não existe nesse mundo aquele que de todo os decifre. Nem o próprio e célebre Doutor Freud conseguiu realizar tal façanha. Quanto mais eu, modesto cronista de jornal, teria a desfaçatez de tentar.

Entanto, ultimamente, meu compadre Chico Newton anda me causando impensáveis preocupações devido a sua conduta que considero pra lá de estranha, quando ele enche a caveira de cachaça. Nada a ver com a área sexual, é claro, graças ao bom Deus. O problema se dá somente quando o fraterno amigo se embriaga até os gorgomilhos. Ao encontrar-se em estado etílico, o gentilandino Paxá pegou a mania esquisita de começar a distribuir conselhos e lições de moral a torto e a direito, espalhando constrangimento generalizado pelos bares que costuma frequentar. Lê a bíblica palavra em voz alta, declama salmos, recita evangelhos, vocifera irritadamente contra os demais biriteiros e quanto mais entorna, mais inflama a sua oratória moralista. Aos polígamos, chega ao cúmulo de prometer as profundas dos infernos. Logo ele, dotado de um sortido harém de seis esposas teúdas e manteúdas. Ganhou merecidamente o apelido galhofeiro de Pastor Caninha, com a ideia fixa de acabar com a cachaça no mundo bebendo todas, numa mistura de pastor e ovelha negra.

Airton Monte - O suicida - 13 Junho 2011

Outro conto , outra vez bem escrito!!!

Que atire a primeira pedra aquele que, um dia, não pensou em suicidar-se, acabar, dar um fim na própria vida, seja por qual razão ou mesmo sem nenhum motivo sequer. Pode acontecer com qualquer um de nós, pelo menos uma única vez no decorrer da nossa existência, acometer-nos a ideia de perpetrar o chamado “tresloucado gesto”, embora estando a gozar da mais hígida sanidade mental. Vanidade pensar que somente os padecentes de um algum grave transtorno mental ou assediados por problemas para os quais considerem inexistir uma possível solução, chegam a apelar para a saída final do suicídio. Tanto é verdade, que já vi pessoas, acometidas por uma doença que sabem incurável, agarrarem-se com unhas e dentes ao mais tênue fiapo de vã esperança e lutarem até o último momento para que a morte não os leve. E só entregam os pontos quando o corpo não mais possui força suficiente para permanecer resistindo ao chamado da Bela Dama sem Piedade, que finda sempre ganhando a batalha.

Muitos imaginam que histórias, como essa que vou contar agora, são muito raras de ocorrer na realidade, de uma pessoa decidir-se pelo suicídio sem possuir motivos para tanto. Enganam-se. São mais comuns do que se pode pensar. Pois foi o que se deu com o Joaquim. Sentado tranquilamente à mesa da sala do apartamento onde morava sozinho, olhou mais uma vez, demoradamente, os comprimidos brancos, vermelhos, azuis, amarelos espalhados sobre a branca toalha feito um arco-íris de pílulas aparentemente inofensivas e sentiu perpassar-lhe pela base da espinha dorsal um ligeiro calafrio. Suas mãos tremiam um pouco, o coração batia levemente apressado e umas gotinhas de suor lhe orvalhavam a testa. Pudera, era o seu primeiro suicídio. Ergueu-se e foi até a geladeira. Fitou novamente as lisas superfícies coloridas das cápsulas e da distância em que se encontrava delas, pareceu-lhe que se juntavam numa mancha comprida e oscilante diante de seus olhos de suicida de primeira viagem.

Encheu um grande copo de água gelada, colocou-o na mesa. Voltou a sentar-se. Segurou um comprimido. A água dentro do copo refletia sua face suada. A dúvida, não o medo, o espiava com sua enorme presença. O que tinha? Por que não começava a engolir e acabava com tudo? Acaso não acordou possuído pela vontade de morrer? De nada adiantaria ficar com essa cara de Amélia. Ou me mato logo ou não me mato mais, pensou. Estava certo de que queria morrer. Olhou pela janela. Todas as coisas continuavam absolutamente iguais, sem brilho mágico ou aparência fantasmagórica. Não deveria ser assim, demasiado prosaico o dia da sua morte. Nada percebeu de diferente do que já conhecia. Apenas o ronco do mar, a dois quarteirões à frente, parecia mais alto, mais grosso, mais forte. Lá fora, tudo permanecia como dantes, enquanto um copo d’água e um monte de comprimidos encerravam, para ele, todos os mistérios do viver e do morrer, à espera de um gesto seu, completamente imóveis sobre a toalha branca de uma mesa. Que morte mais besta seria a sua.

Levaria tempo até descobrirem seu corpo apodrecido, coberto pelo lixo miúdo depositado por ratos e baratas. O mundo restaria impassível, indiferente apesar de sua morte, que não interromperia a sequência de outras vidas, o girar rotineiro de outros destinos. Tentou manter-se calmo dentro do tempo que pensava inda lhe restar. Ergueu o copo, segurou um comprimido, que ficou quieto na sua mão, viborazinha ansiosa pela presa. Não desejava ter medo dele, seu doce anjo salvador. Pôs na boca. Bastava engolir e escapar da prisão. Súbito, resolveu que não morreria desse jeito, manso feito um boi. Saiu do apartamento. Desceu as escadas como um canguru. Caminhou pelas ruas procurando no olhar de um passante que o reconhecesse como um futuro moribundo. Ninguém lhe deu atenção. Começou a falar em voz alta que ia morrer. Cansado, parou de falar. Voltou à casa. Pôs um punhado de pílulas na boca. Por instantes, segurou a morte na língua. Deu uma cusparada libertadora. Pegou um sonrisal, jogou dentro do copo. Com um sorriso meio apalermado, ficou vendo a zoada bonita que ele fazia se desmanchando entre borbulhas.

Airton Monte - Sono de bebê - 10 Junho 2011

Esse texto aqui não é crônica, mas sim um conto e bem escrito!!


Se existia um sujeito inteiramente desprovido da mínima vocação para as lides casadouras, esse indivíduo era o Zé das Couves. Assim alcunhado pela ferina língua do imbatível canelau, por ser um feliz proprietário de uma barraca de verduras na Feira da Gentilandia, cuja maior especialidade tratava-se, obviamente, das couves, embora seu próspero comércio oferecesse, aos habituais fregueses, outros tipos de vegetais, inclusive as populares ervas medicinais, capazes de curar, com inegável eficiência, todos os males do corpo e da mente, desde dor de cotovelo à espinhela caída. Pois o nosso herói abominava, com todas as forças d’alma, sequer pensar em casamento, amarrar-se a uma só mulher pelo resto da vida, perdendo a sua tão prezada liberdade de boêmio incorrigível e sua fama de conquistador barato. Contumaz frequentador de bordéis e terror das domésticas secretárias, o Zé das Couves preservava a sua aprazível solteirice com férrea tenacidade, como quem guarda um tesouro de pirata.

Namoradas teve aos montes e às mancheias. Dessas indigitadas, algumas chegaram até a ser promovidas à ansiada condição de noiva. Entanto, quando constatavam que o futuro marido não iria mudar seus noctívagos costumes, seus hábitos mulherengos, logo pulavam fora do barco e o Zé das Couves continuava levando a vida que pediu a Deus. Mas, um dia a casa cai e o nosso herói teve que render-se às evidências. Achou de atrair-se perdidamente pelos encantos fatais de uma mulata sestrosa, filha única de um companheiro de trabalho. Namoro vai, namoro vem, a garota cedeu ao pedido de uma prova de amor e findou por engravidar. O pai da moça, açougueiro, conhecido por sua valentia, botou a faca nos peitos do Zé, exigindo a reparação da honra e o Das Couves se viu obrigado a encarar o que tanto temia: o casamento. E assim, casou-se, porém não abriu mão de viver como sempre viveu, na farra, embora restringindo, a contragosto, a esbórnia somente aos fins de semana. A mulher aceitava as fugas do Zé ou fingia aceitar e os dois iam levando o barco matrimonial.

E assim, entre tapas e beijos, idas e voltas, passaram-se os anos, vieram os filhos e o Zé permanecia o boêmio de sempre, a esposa suportando, ali firme feito uma rocha, as farras do marido, as suas puladas de cerca, parecendo habituada com o esposo que o destino lhe deu. Um belo dia, o nosso Zé chegou em casa, como de hábito, depois de pegar o sol com a mão, mais pra lá do que pra cá, mais morto do que vivo, maltrapilho e maltratado, com um bafo de cachaça daqueles de matar dragão. Deu-se, então, aquela titânica batalha pra conseguir enfiar a chave na porta, abrir cadeados até adentrar o sagrado recesso do lar. Tudo que queria era um copo d’água gelado de trincar os dentes e desmaiar no leito conjugal. Assim, a noite teria um final feliz, com muita rapadura pra matar a ressaca. A noite havia sido comprida demais, como se a noite tivesse medida, rumo, direção. Ora, meu caro Zé, com toda sua experiência, tantos anos de janela, você ainda não sabia, como deveria saber, que a noite é o imprevisível? O inesperado? O desconhecido?

Afogado nos etílicos vapores, nem percebeu que não havia mais ninguém em casa, a não ser a sua cambaleante figura. Tirar a camisa, descalçar os sapatos até que não foi tarefa das mais difíceis. Na hora de desvestir as calças foi que o bicho pegou. Para um sujeito embriagado, tirar as calças é como escalar o Everest. Balança, balança, balança, mas não cai. Porém, caiu. De repente, estirado o chão do quarto, seus olhos já meio embaçados se deparam com um desaforado bilhetinho: “Quem é a quenga com quem tu anda agora, pra te fazer dormir fora de casa e eu que fique sem homem”! O Zé foi tomado por uma feroz indignação. Quem dera houvesse mesmo uma quenga. Dormir fora de casa? Como se a noite tivesse sido feita pra dormir. O que no fundo lhe doía mais naquele bilhete era o imperdoável insulto à sua virilidade. Sentiu-se profundamente desmoralizado, mas estranhamente sentiu-se feliz. Ainda era capaz de despertar ciúmes na esposa às cinquenta mal dormidas e encachaçadas primaveras. Pensando nisso, arrastou-se até acama e dormiu um pesado e inocente sono de bebê.