domingo, 26 de junho de 2011

Airton Monte - Boemia - 18 Abril 2011

Airton Monte - Boemia 

Quando me perguntam se continuo sendo um boêmio, sem hesitar respondo prontamente que sim. Fui, sou e serei um boêmio pelo resto do tempo que for dado viver. E não poderia ser de outro modo, pois a boemia, como o amor pelo futebol, corre farta em minhas veias desde que nasci. E não é pra menos. Meu avô João, pai do meu pai era um boêmio dos mais inveterados. De meu pai, Dom Airton do Monte, o maior filósofo vivo já nascido na rua Dom Jerônimo, nem é bom falar, pois tinha o mesmo vírus no coração. Só que a sua boemia possuía uma natureza especialmente única, difícil de encontrar naqueles de nossa estirpe. Era um boêmio diurno, jamais se entregava aos braços da esbórnia depois que o sol ia pra cama. Muitas vezes o ouvi repetir o seu batido refrão:a noite foi feita pra se dormir. E procurava seguir ao pé da letra, com raras exceções, essa sua máxima existencial.
No entanto, para meu profundo desprazer, faz quase dois longos e intermináveis anos que estou forçosamente afastado das lides etílicas, das boêmias trincheiras noctívagas, obedecendo com fidelidade canina às duras ordens do departamento médico da Academia do Beco, que tenta briosamente salvaguardar minha combalida saúde debaixo de pau e pedra. Também, pudera. Não existe fígado humano, por mais blindado que seja, capaz de resistir incólume a quarenta anos de ingestão diária de cerveja em quantidades industriais e as infindáveis noites passadas em claro. Havia um preço a pagar por tamanha estroinice de higidez, bem claramente sabia. E acabei pagando com juros e correção monetária. Por um triz, escapei de ir mais cedo desta para pior. Porém, não me arrependo nem lamento a estúrdia em que vivi. O que está feito, está feito. Não se pode voltar atrás, apagar as besteiras que fiz.
 
O importante mesmo é que estou vivo pra contar a história, embora permaneça com meus prazeres reduzidos, levando uma vida caseira, reconhecendo os meus limites, as restrições que o corpo gasto me impõe. De há muito perdi qualquer tênue esperança de retomar os hábitos insalubres de outrora e que davam uma graça inigualável à minha desregrada maneira de estar no mundo. Sei que jamais poderei cantar, pelas mesas dos bares, em voz alta e álacre, aquela canção símbolo que o grande Nelson Gonçalves imortalizou: ele voltou, o boêmio voltou novamente! Adeus, para sempre, vida airada, alegre, despreocupada do futuro. Adeus à vadiagem e à pândega dos fins de semana na ilustre companhia dos amigos tão chegados à boemia quanto eu. Adeus, aventuras inesperadas que me aconteciam pelas madrugadas afora. Adeus às mulheres furtivas, flores vadias das noites enluaradas, resplandentes de beleza e poesia das ruas da cidade.
 
Adeus, serenatas dolentes dedicadas às paixões passageiras, quando havia sobrados e moças de olhar lírico debruçadas nos balcões ou transparentemente ocultas atrás das leves cortinas das janelas entrefechadas, iluminadas pela límpida claridade do luar. Adeus, amanheceres solares, quando chegada era a hora de voltar pra casa maltrapilho e maltratado, com os ouvidos e a alma preparados para as inevitáveis guerrilhas conjugais. Adeus aos companheiros de copo que, infelizmente, já se foram para os campos do além. Minhas memórias dos meus tempos boêmios são uma sucessão infinda de adeuses que restam comigo, inapagáveis de tão inesquecíveis. Sinto saudades até das ressacas mais dolorosas, tanto morais quanto físicas. As físicas, logo se curam sem deixar vestígios. As morais, algumas jamais cicatrizam. Tornam-se perenes como as saudades que ainda em mim habitam, mesmo que eu tente dizer-lhes adeus para nunca mais.

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