sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ano novo

Reproduzindo a sempre excelente crônica do completo Airton Monte, o tema é o atual e se chama Ano Novo.

Ano novo



Não se pode dar um passo, ao botar os pés fora de casa, sem que nos façam a indefectível e paulificante perguntinha: onde vai passar o Réveillon? Eu, só pra me livrar dos chatos de plantão, logo respondo com uma mentira épica, dizendo que vou festejar em Paris com a cara mais lavada do mundo. Ah, quem me dera a felicidade de passar o Ano Novo em Paris, bolsos estufados de dinheiro e nenhuma preocupação no juízo, longe desse mundinho habitual e comezinho em que habito. Todavia, vou ficar por aqui mesmo, na minha cidade, na minha casa, comemorando com minha mulher feito um casal de noivos de meia idade, porquanto nossos filhos, jovens pássaros fujões, vão alçar voo para outras pairagens, no que fazem muito bem, pois voar é com os pássaros.

Jamais entrou em minha teimosa cabeçona chata a tradicional caracterização do Ano Velho na figura de um caquético macróbio, vestes puídas, longas barbas brancas, apoiado numa bengala. Nem a do Ano Novo em forma de bebê recém-nascido, envolto em fraldas. Pra mim, é mais um ano que vivi e mais um ano que viverei, alimentando os sonhos e esperanças de sempre, no aguardo de que o que me vem pela frente seja melhor do que o que para trás ficou. Há mais rugas sulcadas em meu rosto e passados dissabores em meu coração. Porém, vou levando em frente a minha história, escrevendo-a com minhas próprias mãos. Nessa matéria de viver, não se reescreve o que já foi escrito. Um novo ano pede palavras novas e páginas em branco e abomina o mata-borrão e velhos personagens.


E as tradicionais promessas de fim de ano? Aquelas que se costuma fazer, genuflexo e de mãos postas, na empolgação do calor da festa? Já me tinha prometido não fazê-las, pois dificilmente as cumpro e mal as faço, logo delas me esqueço tão rapidamente quanto as fiz. Mudar de vida, abandonar alguns hábitos, largar certos vícios, assumir novas posturas, escrever o romance de minha geração, ganhar o Prêmio Nobel, tornar-me o mais perfeito marido da face da Terra. Deixar de fumar é-me imprescindível, se quiser continuar vivo. Mudar de casa também é impossível recuar, coagido que estou pela força das imobiliárias circunstâncias, a não ser que aconteça o milagre de ganhar na loteria, com a ajudinha providencial de São Francisco.


Ficar mais um ano sem beber? Fico porque é o jeito. Meu fígado combalido ainda implora por um tantinho a mais de sossego. Outrossim, como diria meu sábio irmão Vessillo, os médicos podem me proibir de beber, mas não de ter sede. Entanto, me descasar da boemia, isso nem sequer pensar. Apreciar as mulheres bonitas faz parte da minha natureza, portanto, nessa questão, não prometo nada. Em compensação, prometo demonstrar mais tolerância com a burrice alheia, inclusive a minha. Aprender a cozinhar está completamente fora das minhas cogitações, assim como gostar de ir à festa de menino novo. Pagarei minhas dívidas na medida do possível, principalmente com a Receita Federal. E assim, dando os trâmites por findos, que venha o Ano Novo e nos traga a Paz de que o mundo anda tão precisado.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Quando o Natal não for um dia

Folheando as páginas do jornal O POVO ,como sempre faço todas as manhãs que posso fazer isso, deparei com um texto bom escrito na seção de opinião, não sei se se trata de um escritor de profissão mas ele está bem escrito. Reproduzo a seguir:

Quando o Natal não for um dia



Via-se que era um homem rico. Pelos trajes, pela postura, pela maneira como olhava tudo ao redor. A impressão que transmitia era justamente essa: tudo posso, sou senhor e sou dono. Eu olhava de longe, como simples observador. Era difícil enxergar com profundidade, naquele ambiente de compras apressadas, de barulho ensurdecedor. Prefiro a quietude, mas não posso fugir do burburinho, em algumas situações especiais.


A criança, rompendo as normas de segurança, penetrou naquele lugar, sem portar no rosto e nos trajes a senha exigida: “sou um consumidor em potencial”. O homem rico baixou os olhos e viu a criança pobre. Havia tristeza no olhar do menino. Tirou da carteira uma nota de 50 reais e disse ao garoto: “Tome, compre um presente de Natal.”


O pirralho apanhou a nota, um sorriso de satisfação estampou-se em seu semblante. Saiu correndo com a nota bonita por entre os dedos pequeninos. Observei o rosto daquele homem que olhava para tudo como senhor e dono. Pude captar seu pensamento: “Que coisa maravilhosa! Sinto-me feliz. Esse sorriso de criança deu-me mais satisfação, mais contentamento do que as festas a que vou, do que os empregados que me servem, do que os automóveis de que me sirvo, do que os amigos que me bajulam.”


Dialoguei em silêncio com o homem rico: “Sim, meu caro. Os homens fogem da felicidade. O mundo é triste porque o Natal é apenas um dia. Quando toda noite for semelhante à noite em que Jesus nasceu, quando toda manhã for manhã de Natal, nossa vida mudará. Ah se fôssemos uma corrente contínua de amor, se não fôssemos egoístas, avaros, competidores, fera junto ao irmão, construiríamos um mundo novo. Se praticássemos a caridade, como o apóstolo Paulo a descreveu numa epístola imortal, que bom seria viver neste mundo, então transformado em morada fraterna.


A caridade é a ajuda que ninguém testemunha, é a palavra de carinho, o conselho amigo, o sorriso e o aceno, a disponibilidade completa, a humildade contínua. A caridade é a luta pela transformação das estruturas sociais, é o combate permanente para construir a Justiça e a Paz. A caridade é a pugna incessante contra todas as formas de opressão, marginalização e discriminação, pugna que muitas vezes cobra, como preço, a própria vida dos lutadores, mártires da edificação de uma outra sociedade.


Quando o Natal não for apenas um dia, até o Dia de Natal será diferente. Ninguém estará fora da celebração, não haverá muros, não haverá divisões.

João Baptista Herkenhoff - Magistrado aposentado, professor e pesquisador universitário

Pubicado no jornal O POVO edição 27.607 de 24 de Novembro de 2010.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Adelia Prado Poesia

Dando sequência de poemas de ADELIA PRADO venho agora com o excelente texto poético intitulado "Moça Na Cama"


Moça na cama



Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas, uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom
Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos.
e cavalgar no topor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.



extraídos de "Adélia Prado - Poesia Reunida", Editora Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 175.