quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Pequena Crônica - Dinheiro - 22 de dezembro de 2022

 




Pequena crônica – O dinheiro – 22 de dezembro de 2022

 

Estando sentado a mesa que sobre ela deitam algumas cédulas de dinheiro, veio a mente uma imagem de outrora que presenciava quando criança. Nas tardes de domingo meu pai e meu tio prestavam contas da rústica sociedade entre eles. Era o momento de contabilizar as perdas e ganhos de uma de semana de trabalhos e transações comercias. Ao canto da sala, numa mesa de madeira, só os dois transacionavam. Ali era um diálogo quase sacro no qual nenhuma outra pessoa poderia se intrometer (nem mesmo minha mãe). E eu como criança, nem entendia nada e estava totalmente reprimido para intervir naquela contenda contábil. Meu genitor e seu irmão empilhavam notas sobre notas, puxavam para um lado um dos montantes, depois iam e viam em debates acalorados na maior parte do tempo. Havia ainda várias lembranças por partes deles das vendas que ficaram fiadas, dos futuros lançamentos no mercado de empreendimentos imediatos.  Assim foram estes dois minúsculos e rústicos comerciantes que fizeram parte de minha infância.

O dinheiro é um papel pintado que tem valor de mercado e economia. O escambo de objetos de maior ou menor valor determina transações mercadológicas. Li certa feita na escola uma crônica de Olavo Bilac sobre o tema e desde lá sou perseguido pelo tema. Bilac finaliza sua epopeia ao citar o rei Midas que se perdeu na sua ambição pelo dinheiro ao tocar tudo e virar ouro, inclusive sua comida que levava a boca. Tenho o livro a Origem do dinheiro do autor austríaco Carl Menger mas eu não li este compêndio por orientação de meu partido, não li nem mesmo para fazer a crítica.

Hoje o papel moeda vai perdendo o espaço e a magia do capital. Em tempos digitais, até o dinheiro é algo virtual. Até mesmo as minúsculas transações de pequenos lanches ou coisa que o equivalha. O capitalismo brutaliza até as relações de dinheiro na quase extinção do papel moeda. Se diminuem os escambos presencias, as trocas e os trocos. O papel dinheiro servia até de papel bilhete para mandar recados e correntes, mensagem cifradas. Comunicação de toda ordem. Vamos ficando cada vez mais mecanizados quando as curtas negociações passam por algoritmos frios nos quais distanciam os seres. Este é o capitalismo.

 


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Pequena Crônica - Tertúlia - 26 de outubro de 2022

 26 de Outubro - Pequena Crônica - Tertúlia





Manhã de um dia qualquer. Dia neutro. Dia cinza. Preciso sair de minha clausura de três ou quatro dias. Minha solidão causa uma angústia desgastante. Minha respiração está opressa neste interregno eremita, mais ainda porque tenho intensificado minha condição de fumante inveterado. No autoexílio na casa de móveis arcaicos resta muito pouco o que fazer além de lê, fumar, comer algo e pouco nas horas incertas e dormir sonos assombrados e cheios de interrupções. Mantenho meus custos para a manutenção de minha existência através de um minguado montepio deixado por meu pai. Sou um dos últimos galhos de uma árvore genealógica que foi bem mais frondosa do que hoje e logo logo serie uma galho a ser podado dessa copa.

Saindo da minha bolha  cosmopolita, vou campear mudamente os limitados espaços citadinos. A esta hora equânime há poucos locatários da urbe, mas há vida. Pulsão de vida. Cenas rotineiras. Um cortejo fúnebre passa na rua do cemitério, o sino da igreja católica dobra pelo finado. Sob o campanário há anacoretas que não cessam de propalar silentemente suas jaculatórias. No lado oposto a praça há um pregão de um vendedor de bugigangas. Há ainda por ali outros sitiantes, vagabundos, vendedores de bilhetes de loterias, mães de santos, pastores e meretrizes. Todos no mesmo espaço. Ao boreal dali ficam as casas comerciais onde os clientes gastam despudoradamente seus surrados numerários. Há ainda o Ratisbona bar, um misto de café e restaurante, onde a esta hora tem apenas dois clientes: um casal de meia idade troca carícia cheio de lascívia como se eles fossem os únicos habitantes de um paraíso inóspito.

As cenas se sucedem, o tempo se gasta. E tudo isso que foi registrado por aqui me deixou chato, enjoado e lasso. Preciso voltar para meu recato, para minha bolha. Quero fugir daquilo tudo. Preciso me recolher ao meu eremitério. Preciso voltar para a penumbra. Está no meu ambiente de ar rarefeito incensado pelo fumo que saem de meus cigarros que se fumam por si só.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Reproduzindo Vinicius de Moraes - Invocação à mulher única

 Após assistir a uma vídeo no qual o excelente escritor infanto-juvenil Pedro Bandeira recitava esta bela peça da Literatura de Vinicius de Moraes, resolvi reproduzir por aqui!





Invocação à mulher única – Vinícius de Moraes


Tu, pássaro – mulher de leite! Tu que carregas as lívidas glândulas do amor acima do sexo infinito
Tu, que perpetuas o desespero humano – alma desolada da noite sobre o frio das águas – tu
Tédio escuro, mal da vida – fonte! jamais… jamais… (que o poema receba as minhas lágrimas!…)
Dei-te um mistério: um ídolo, uma catedral, uma prece são menos reais que três partes sangrentas do meu coração em martírio

E hoje meu corpo nu estilhaça os espelhos e o mal está em mim e a minha carne é aguda
E eu trago crucificadas mil mulheres cuja santidade dependeria apenas de um gesto teu sobre o espaço em harmonia.

Pobre eu! sinto-me tão tu mesma, meu belo cisne, minha bela, bela garça, fêmea
Feita de diamantes e cuja postura lembra um templo adormecido numa velha madrugada de lua…
A minha ascendência de heróis: assassinos, ladrões, estupradores, onanistas – negações do bem: o Antigo Testamento! – a minha descendência

De poetas: puros, selvagens, líricos, inocentes: O Novo Testamento afirmações do bem: dúvida (Dúvida mais fácil que a fé, mais transigente que a esperança, mais oporturna que a caridade Dúvida, madrasta do gênio) – tudo, tudo se esboroa ante a visão do teu ventre púbere, alma do Pai, coração do Filho, carne do Santo Espírito, amém!

Tu, criança! cujo olhar faz crescer os brotos dos sulcos da terra – perpetuação do êxtase
Criatura, mais que nenhuma outra, porque nasceste fecundada pelos astros – mulher! tu que deitas o teu sangue

Quando os lobos uivam e as sereias desacordadas se amontoam pelas praias – mulher!
Mulher que eu amo, criança que amo, ser ignorado, essência perdida num ar de inverno.
Não me deixes morrer!… eu, homem – fruto da terra – eu, homem – fruto da carne
Eu que carrego o peso da tara e me rejubilo, eu que carrego os sinos do sêmen que se rejubilam à carne

Eu que sou um grito perdido no primeiro vazio à procura de um Deus que é o vazio ele mesmo!
Não me deixes partir… – as viagens remontam à vida!… e por que eu partiria se és a vida, se há em ti a viagem muito pura

A viagem do amor que não volta, a que me faz sonhar do mais fundo da minha poesia
Com uma grande extensão de corpo e alma – uma montanha imensa e desdobrada – por onde eu iria caminhando

Até o âmago e iria e beberia da fonte mais doce e me enlanguesceria e dormiria eternamente como uma múmia egípcia

No invólucro da Natureza que és tu mesma, coberto da tua pele que é a minha própria – oh mulher, espécie adorável da poesia eterna!

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Pequena Crônica - Tudo pra Ser Reunido Agora - 25 de Fevereiro de 2022

 


Pequena Crônica – Tudo para ser reunido agora

 

            Manhã de um dia qualquer. Ainda sofrendo as consequências físicas da carraspana da noite passada, mesmo não tendo sido uma pândega das maiores. Despertei hoje acompanhado por uma vontade de perambular por alhures a esmo, rua a rua. A este momento o horizonte pros lados do nascente, está carregado por nuvens plúmbeas e carregadas que denunciam a qualquer momento uma chuva. Mesmo com estes iminentes contratempos, dou início a meu itinerário errante. Nas calçadas das casas por onde passo há poucos sitiantes para esta hora tradicional de tertúlia. Passeio por ruas tortuosas e de pisos irregulares. Meus pés de anatomia imperfeita, sofrem com os impactos causados pelo sobrepeso de meu corpo, mesmo estando os pés sobre proteção de macio calçado. E por estas andanças tenho a companhia de uma vitrola portátil que trago junto ao bolso do meu “curto”. Executado pelo aparelho eletrônico, seleciono para o “convencional” o extraordinário músico Eumir Deodato e sua excelente “World Music” quase inclassificável pela mistura de influências mil da música.

            O jogo segue e o percurso percorrido pelos meus combalidos pés estão cada vez mais aleatórios. Muitas vezes pareço está andando em círculos, quase em moto perpétuo. E neste caos do itinerário, incidentalmente eu circundo a casa da moça da loja de secos e molhados. É uma modesta choupana sem nenhuma arquitetura mais elaborada, luxo ou outros detalhes que chamem a atenção de quem passa por ali indiferente no dia a dia.  É um modesto casebre num recanto de uma tortuosa rua. O frontispício urge melhoramentos. A distância se observa a sala escura e inóspita, ali jaz um varal repleto de roupas recém lavadas. Momentaneamente não surge por ali sinal que há algum locatário do local, parece que todos já saíram pra seus afazeres.

            Agora o tempo avança, e meu caminhar segue a esmo. Percorro ruas, vielas, becos e alamedas. Passo por uma casa de saúde que está bastante movimentada pois estamos num tempo de doenças sazonais. Passo ainda por um suntuoso templo religioso que está sendo preparado para receber logo mais um sem número de anacoretas.  Cruzo caminho de pessoas que me cumprimentam e de chofre respondo maquinalmente um a um. As nuvens que ainda a pouco denunciavam chuva, se esvaíram por todos os cantos e a chuva não veio. Quem domina agora o espaço é um sol que brilha intensamente. O fenômeno é a ordem de todos os dias por aqui. A temperatura sobe rapidamente. Pessoas procuram os filetes de sombras. Até os cachorros procuram guarida na areia úmida da chuva que caiu na noite passada.

            Volto para meu tugúrio e o contador de passos que eu acionei para tal tarefa avisa que eu dei aproximadamente nove mil passos desde o início desta légua tirana! Findo o expediente tendo o corpo tomado por suor. Faz-se necessário imediatamente um asseio demorado. Tudo é verossimilhança, ou quase tudo.


domingo, 6 de fevereiro de 2022

Pequena Crônica - Alhures - 6 de Fevereiro de 2022

 


6 de Fevereiro  - Pequena crônica – Alhures

 

Uma das práticas que mais encantam as pessoas é conhecer lugares desconhecidos, lugares nunca vistos e nem situados dantes. E para se deslocar, a depender da distância, faz-se necessário a utilização de semoventes. Eu na minha limitação para tal apropriação enfrento bastante dificuldades para tal. Mas hoje é mais fácil ver virtualmente as várias paisagens (urbanas ou não) mundo a fora. E é isto que eu faço nas raras horas de ócio que me são gratuitas. Hoje eu perambulei por ruas tortuosas de alguma urbe Brasil afora. (Não citarei que cidade é esta e muito menos qual bairro). Como citado, as ruas e vias urbanas são tortuosas e sem nenhum planejamento urbanístico. Nenhum traço de enxadrezamento da construção das ruas, vielas, becos e alamedas.  Percorro aleatoriamente as ruas sem me preocupara com os prédios ou paisagens naturais que cruzarão meu caminho. Há prédios de vários pavimentos sem nenhum rigor de engenharia ou arquitetura. Verdadeiros monstrengos que parecem que cairão a qualquer momento. Há um largo e uma praça pública mal assistida pela máquina estatal. Campeiam por lá os invisíveis sociais que o sistema econômico/político produziu. Há uma birosca pouco espaçosa que tem mesas e cadeiras na calçada atrapalhando os transeuntes do local. Há uma igreja onde poucos fiés foram flagrados a esta hora da manhã ( suponho que o registro fotográfico foi numa manhã de sol!). O espaço urbano se expande de forma infinda e eu cesso meu passeio virtual.

As horas avançam, minhas obrigações do lar precisam ser cumpridas. Preciso cumprir horas e tarefas para ser um eterno escravo do tempo. Preciso planejar as lides diárias desta semana que começará daqui a poucas horas. Consulto o aplicativo de mensagens para saber a que horas a moça da loja de secos e molhados o consultou pela última vez. Já é um tempo razoável desde da última vez. Estico a vista e aprecio um pequeno morro que fica ao fundo do meu quintal. Preciso voltar a rotina, preciso voltar a normalidade imposta. Hoje é mais um dia no calendário. Tudo se deu num átimo e eu comprei tudo isto sem dinheiro.