sábado, 11 de abril de 2015

Reedição de uma crônica antiga - 11 Abr 2015

Verossimilhança, momento fatal - Crônica - A Ermitoa - 17 de Setembro 2014 A Ermitoa Morava sozinha, os parentes mais próximos já haviam todos cumprido a sina mais certa que é a morte. Essa mulher já com uma idade na qual ninguém sabia ao certo, nem mesmo ela, mais sabiam todos que ela era uma amanuense aposentada, fato que denunciava o avanço de sua idade. Mantinha uma amizade amistosamente distante com seus vizinhos e na sua casa quase nunca ou nunca mesmo recebia nenhum conviva. Os mais próximos, ou os menos distantes, sabiam que em seu lar, as principais companhias eram um sem número de gatos que vagabundeavam na pequena choupana. Dizem as más línguas que a quantidade de felinos diminuíra significativamente nos últimos anos, por pura falta de zelo de sua dona! Os anos de serviço na repartição pública não permitiu que ela construísse grande patrimônio, não fora a pequena casa herdada de seus pais, não teria outro bem semovente ou não. Sua rotina era extremamente simples, mais ainda para uma pessoa que morava só, tinha um fogão em casa mas não usava quase nunca, suas refeições eram feitas num pequeno restaurante suburbano que religiosamente era freqüentado por ela de domingo a domingo, chovesse ou fizesse sol. Os afazeres domésticos eram evitados por ela, realizando tarefas básicas como lavar as poucas roupas de seu enxoval uma vez por semana! Dormia poucas horas a noite,passava muitas horas da noite diante da televisão, complementava as necessidades do sono da noite, nas primeiras horas da tarde de todos os dias! Fazia parte de sua bestial rotina, as caminhadas aleatórias pelas principais ruas do bairro, caminhava descompromissadamente por muito tempo sem maiores preocupação com o tempo! Nesse itinerário quase não interagia com os transeuntes que cruzavam seu caminho, só acenava discretamente para aqueles que julgava mais próximos e confiáveis. De uns tempos para cá a solitária adquiriu o hábito de fazer uso do álcool para preencher as horas do vazio no que fazer! Cumpria suas obrigações etílicas discretamente na solidão do lar, não queria que seus vizinhos dessem alguma notícia desse seu condenável ato. Nos finais de semana era um “rato de sacristia” não perdendo um evento sequer de sua Igreja Católica quase vizinha a sua residência. Nesses dias de cerimônias religiosa, mantinha uma certa cautela nas ações etílicas, precavida de dá bandeira diante os fiéis que a tinha na conta dos mais respeitáveis crentes. E assim se fazia a rotina da solitária mulher, sem parentes ou aderentes, sem muitos afazeres domésticos e tendo como companhia uns gatos rabugentos, o álcool e a fé. Sem exteriorizar suas angústias existenciais de uma vida extremamente solitária e sem maiores ambições!

domingo, 5 de abril de 2015

Conto - Literatura Cearense - Milton Dias - Madrugada I

Homenagem a Literatura Cearense- Um conto do excelente literato Milton Dias - - Extaído do livro ENTRE A BOCA DA NOITE E A MADRUGADA Madrugada I É madrugada, a última deste mês de setembro, e eu mergulho nela sozinho, numa sala pequena, dentro do silêncio grande, que o apito dum guarda desrespeita de vez em quando – e cumpro cautelosamente mais uma insônia, entre lembranças velhas e novas. Uma dessas, a mais antiga, vem dos longes da infância, ainda ao tempo das trevas que a luz elétrica só dissipou muito depois, em Santana do Acaraú: um carro atravessa lentamente a praça enorme da igreja velha, com os faróis queimando a noite jovem – e, de dentro dele, uma bonita voz de homem, voz anônima, forte, lírica, perdida, solta, derrama uma despedida dramática certamente dirigida à bem-amada que o devia escutar soluçando de alguma janela: “Eu vou pra bem longe de ti saudosamente / Adeus minha querida / Querida Guiomar / Adeus, eu vou partir, vou pelo mar.” Quem seria aquela mulher (seria uma mulher ou apenas uma rima?). De quem seria aquela voz que só ouvi uma vez e me transmitiu uma imensa vontade do mar, meu desconhecido, uma grande nostalgia das distâncias, dos mistérios do mundo, deixou-me a imaginação indócil, enquanto o carro, levantando poeira, desaparecia na rodagem, exatamente ali onde um pé de resedá marcava a curva do caminho? Onde andará aquele cantor? Aquela moça onde andará? Será que se uniram? Acabo de ler um trecho de diário alheio e fico pensando que a leitura dos diários me comove mais do que as autobiografias ou as biografias, me parece mais verdadeiro este registro cotidiano dos acontecimentos, dos pensamentos, dos sentimentos – as penas e alegrias, as depressões, as angústias, as vitórias, os fracassos, os amores – tudo posto ali com uma coragem impressionante, os momentos mais íntimos, as horas difíceis, os pequenos dramas, as covardias, os heroísmos, as emoções de cada dia, os medos, os ódios, os ressentimentos, tudo confiado ao papel. E chegada a página final, a pergunta amarga, inevitável – será que valeu a pena registrar assim, minuciosamente, conscientemente, uma vida toda, para depois entregar tudo ao respeitável público (nem sempre respeitador), como quem se desnuda no palco? E vem outra reflexão tácita – a de que aquele que escreveu o Diário, que também teve fome e sede, que conheceu glória e humilhação, que sofreu ambições e se frustrou em muitas delas, e se realizou em algumas, aquela vida que está em minha mão, escrita no papel frio, repousa agora debaixo do chão, já resolveu todos os seus problemas e conflitos terrenos, dorme em paz com Deus. Abro por acaso uma das páginas, vejo uma preocupação momentânea que o martirizou tanto e que agora parece tão mínima! Penso que daqui a pouco será outubro e fico triste. Outubro não me agrada, nem é começo, nem meio, nem fim de ano, o mais antipático de todos, poeirento, calorento. Nele perdi meu pai, nele perdi um amigo – é certamente o que mais me tem cobrado apreensões e sofrências. As paredes desta sala onde me encontro foram testemunhas de outras insônias e as mãos dos que as fizeram levantar já estão vazias definitivamente. Esta mesma pequena sala que agora abriga um homem insone já recebeu noivos para as comemorações e cumprimentos, já acomodou o corpo morto do seu dono, esta sala ouviu conversas e queixas, discussões, esperanças e prantos. A casa toda, em que estou absolutamente só dentro da madrugada, já foi povoada de muitas vozes e de muitos passos de jovens e velhos que desapareceram carregados pela morte ou levados pela vida. Há um silêncio respeitoso e tranqüilizante envolvendo, purificando o mundo, velando, protegendo o sossego e o sono, um silêncio discreto que esconde o que agora ocorre nas sombras protetoras. Quem sabe, alguém está se matando neste momento, alguém deve estar amando neste minuto. Tem gente chegando, tem gente partindo, a esta hora a população está crescendo. Ou está diminuindo? Abro um instante a janela, consulto o céu: não há uma estrela, fugiram todas, me deixaram no mais completo abandono. Nem posso imitar o poeta que conversou com elas toda a noite, tresloucado amigo. Agora um galo solitário solta um grito precursor, distante – será mesmo hora de cantar anunciando a aurora, ou será um galo tresmalhado, desinsofrido? Olho o relógio, são duas horas da manhã, concluo rápido: aquele também está sem sono – e canta. Um latido inesperado de cachorro se levanta aqui na Praça da Escola Normal. Será um protesto ou um apelo, uma queixa ou uma denúncia, um lamento, um convite ou apenas a voz dum cão que não dorme? Escuto religiosamente os silêncios e as vozes da madrugada – enquanto a minha rua dorme, eu guardo, sozinho, de olhos acesos, a insônia fecunda. Entre a boca da noite e a madruga – 1971