Rose
Marie Muraro
Para compreendermos a importância do Malleus é
preciso que tenhamos uma mínima visão da história da mulher ao longo da
história humana em geral. Segundo a maioria dos antropólogos, o ser humano habita
este planeta há mais de 2 milhões de anos. Nossa espécie passou mais de três
quartos desse tempo nas culturas de coleta e caça aos pequenos animais. Nessas
sociedades não havia necessidade de força física para sobrevivência, e nelas as
mulheres possuíam um lugar central. Ainda existem remanescentes dessas culturas
em nosso tempo, tais como os grupos mahoris (Indonésia), pigmeus e bosquímanos
(África Central). Esses são os grupos mais primitivos que existem, e ainda sobrevivem
da coleta dos frutos da terra e da pequena caça ou pesca. Nesses grupos, a
mulher ainda é considerada um ser sagrado, porque é capaz de dar a vida e,
portanto, ajudar a fertilidade da terra e dos animais. Nesses grupos, o
princípio masculino e o feminino governam juntos. Há divisão de trabalho entre
os sexos, mas não há desigualdade. A vida corre mansa e paradisíaca. Nas
sociedades de caça aos grandes animais, que sucederam a essas mais primitivas,
nas quais a força física era essencial, iniciou-se a supremacia masculina. Mas
nem nas sociedades de coleta nem nas de caça se conhecia função masculina na
procriação. Também nas sociedades de caça a mulher era considerada um ser sagrado,
que possuía o privilégio dado pelos deuses de reproduzir a espécie. Os homens
se sentiam marginalizados nesse processo e as invejavam. Essa primitiva“inveja
do útero” dos homens é a antepassada da moderna “inveja do pênis”, que sentem
as mulheres nas culturas patriarcais mais recentes. A inveja do útero deu
origem a dois ritos universalmente encontrados nas sociedades de caça pelos
antropólogos e observados em partes opostas do mundo, como Brasil e Oceania. O
primeiro é o fenômeno da couvade, em que a mulher começa a trabalhar dois dias depois
de parir e o homem fica de resguardo com o recém nascido, recebendo visitas e presentes.
O segundo é a iniciação dos homens. Na adolescência, a mulher tem sinais exteriores
que marcam o limiar da sua entrada no mundo adulto. A menstruação a torna apta
à maternidade e representa um novo patamar em sua vida. Mas os adolescentes
homens não possuem esse sinal tão óbvio. Por isso, na puberdade, eles são arrancados
de suas mães pelos homens, para serem iniciados na “casa dos homens”. Em quase todas
essas iniciações, o ritual é semelhante: é a imitação cerimonial do parto com
objetos de madeira e instrumentos musicais. E nenhuma mulher ou criança pode se
aproximar da casa dos homens, sob pena de morte. Daí em diante, o homem pode
“parir” ritualmente e, portanto, tomar seu lugar na cadeia das gerações. Ao
contrário da mulher, que possuía o “poder biológico”, o homem foi desenvolvendo
o “poder cultural” à medida que a tecnologia foi avançando. Enquanto as
sociedades eram de coleta, as mulheres mantinham uma espécie de poder, mas diferente
daquele das culturas patriarcais. Essas culturas primitivas deviam ser cooperativas,
a fim de sobreviver em condições hostis, e, portanto, não havia coerção ou centralização,
mas rodízio de lideranças, e as relações entre homens e mulheres eram mais fluidas
do que viriam a ser nas futuras sociedades patriarcais. Nos grupos matricêntricos,
as formas de associação entre homens e mulheres não incluíam nem a transmissão
do poder nem a da herança, por isso a liberdade em termos sexuais era maior.
Por outro lado, quase não existia guerra, pois não havia pressão populacional
pela conquista de novos territórios. É só nas regiões em que a coleta é
escassa, ou onde vão desaparecendo os recursos naturais vegetais e os pequenos animais,
que se inicia a caça sistemática aos animais de grande porte. Então a
supremacia masculina e a competitividade entre os grupos na busca de novos
territórios começam a se instalar. Agora, as sociedades devem competir entre si
por um alimento escasso, a fim de sobreviver. As guerras se tornam constantes e
passam a ser mitificadas. Os homens mais valorizados são os heróis guerreiros.
Começa a se romper a harmonia que ligava a espécie humana à natureza, porém
ainda não se instala definitivamente a lei do mais forte. O homem ainda não
conhece com precisão a sua função reprodutora e crê que a mulher fica grávida dos
deuses. Por isso ela conserva poder de decisão. Nas culturas que vivem da caça,
já existe estratificação social e sexual, mas não é completa como nas sociedades
que se lhes seguem. É no decorrer do neolítico que, em algum momento, o homem
começa a dominar a sua função biológica reprodutora, e, podendo controlá-la,
pode também controlar a sexualidade feminina. Então surge o casamento, tal como
o conhecemos hoje, no qual a mulher é propriedade do homem e a herança se
transmite através da descendência masculina. Já acontecia assim, por exemplo, nas
sociedades pastoris descritas na Bíblia. Naquela época, o homem já tinha
aprendido a fundir metais. Essa descoberta surge por volta de 10000 ou 8000 a.C.
E, à medida que essa tecnologia se aperfeiçoa, começam a ser fabricadas não só armas
mais sofisticadas como também instrumentos que permitem cultivar melhor a terra
(o arado, por exemplo). Hoje há um consenso entre os antropólogos de que os primeiros
humanos a descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres, porque podiam compará-los
com o ciclo do próprio corpo. Mulheres também devem ter sido as primeiras plantadoras
e as primeiras ceramistas, mas foram os homens que, a partir da invenção do arado,
sistematizaram as atividades agrícolas, iniciando uma nova era, a era agrária,
e com ela a história que vivemos hoje. Para poder arar a terra, os grupamentos
humanos deixam de ser nômades. São obrigados a se tornar sedentários. Dividem a
terra e iniciam as primeiras plantações. Começam a se estabelecer as primeiras
aldeias, depois as cidades, as cidadesestado, os primeiros Estados e os impérios,
no sentido antigo do termo. As sociedades, então, se tornam patriarcais, isto
é, os portadores dos valores e da sua transmissão são os homens. Já não são
mais os princípios feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim,
a lei do mais forte. A comida era destinada, primeiro, ao dono da terra, sua
família, seus escravos e seus soldados. Até ser escravo era privilégio. Só os párias
nômades e os sem-terra pereciam no primeiro inverno ou na primeira escassez. Nesse
contexto, quanto mais filhos, mais soldados e mais mão de obra barata para arar
a terra. As mulheres tinham a sua sexualidade rigidamente controlada pelos
homens. O casamento era monogâmico e a mulher era obrigada a sair virgem das
mãos do pai para as mãos do marido. Qualquer ruptura desta norma podia significar
a morte. Assim também o adultério: um filho de outro homem viria ameaçar a transmissão
da herança, realizada por meio da descendência da mulher. A mulher fica, então,
reduzida ao âmbito doméstico. Perde qualquer capacidade de decisão no domínio
público, que se torna inteiramente reservado ao homem. A dicotomia entre o privado
e o público estabelece, então, a origem da dependência econômica da mulher, e
esta dependência, por sua vez, gera, no decorrer das gerações, uma submissão
psicológica que dura até hoje. Todo o período histórico até os dias de hoje
transcorreu nesse contexto. A cultura humana passou de matricêntrica a patriarcal.E o Verbo veio depois “No princípio era a Mãe, o Verbo veio depois.”
É assim que Marilyn French, uma das maiores pensadoras feministas americanas,
começa o seu livro Beyond Power (Summit Books,Nova York, 1985). E não é sem razão,
pois podemos retraçar os caminhos da espécie através da sucessão dos seus
mitos. Um mitólogo americano, em seu livro As
máscaras de Deus: mitologia
ocidental, citado por French, divide todos os mitos
conhecidos da criação em quatro grupos. E, surpreendentemente, esses grupos
correspondem às etapas cronológicas da história humana. Na primeira etapa, o
mundo é criado por uma deusa mãe sem auxílio de ninguém. Na segunda, ele é
criado por um deus andrógino ou um casal criador.Na terceira, um deus macho toma
o poder da deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Finalmente,
na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho. Essas quatro etapas que se
sucedem cronologicamente também são testemunhas eternas da transição da etapa matricêntrica
da humanidade para a fase patriarcal, e é esta sucessão que dá veracidade à frase
já citada de Marilyn French.Alguns exemplos nos farão entender as diversas
etapas e a frase de French. O primeiro e mais importante exemplo da primeira
etapa na qual a Grande Mãe cria o universo sozinha é o próprio mito grego. Nele
a criadora primária é Gaia, a Mãe Terra. Dela nascem todos as protodeuses:
Urano, os Titãs e as protodeusas, entre as quais Reia, que virá a ser a mãe do
futuro dominador do Olimpo, Zeus. Há também o caso do mito Nagô, que vem dar
origem ao candomblé. Neste mito africano,é Nanã Buruquê que dá à luz todos os
orixás, sem auxílio de ninguém. Exemplos do segundo caso são o deus andrógino
que gera todos os deuses, no hinduísmo, e o yin e o yang, o princípio feminino
e o masculino que governam juntos na mitologia chinesa. Exemplos do terceiro
caso são as mitologias nas quais reinam, em primeiro lugar, deusas mulheres,
que são, depois, destronadas por deuses masculinos. Entre essas mitologias está
a sumeriana, na qual reinava primitivamente a deusa Siduri, num jardim de delícias,
cujo poder foi usurpado por um deus solar. Mais tarde, na epopeia de Gilgamesh,
ela é descrita como simples serva. Ainda, os mitos primitivos dos astecas falam
de um mundo perdido, de um jardim paradisíaco governado por Xoxiquetzl, a Mãe
Terra. Dela nasceram os Huitzuhuahua, que são os Titãs e os Quatrocentos Habitantes
do Sul (as estrelas). Mais tarde seus filhos se revoltam contra ela e ela dá à
luz o deus que iria governar a todos, Huitzilopochtli. A partir do segundo
milênio a.C., contudo, raramente se registram mitos nos quais a divindade
primária seja mulher. Em muitos deles, eles são substituídas por um deus macho que
cria o mundo a partir de si mesmo, tais como os mitos persa, meda e, principalmente
e acima de todos, o nosso mito cristão, que aqui será enfocado. Javé é deus
único Todo-Poderoso, onipresente, e controla os seres humanos em todos os momentos
da vida. Cria sozinho o mundo em sete dias e, no final, cria o homem. E só
depois cria a mulher, assim mesmo a partir do homem. E coloca ambos no Jardim
das Delícias, onde o alimento é abundante e colhido sem trabalho. Mas, graças à
sedução da mulher, o homem cede à tentação da serpente e o casal é expulso do
paraíso. Antes de prosseguir, procuremos analisar o que já se tem até aqui em
relação à mulher. Em primeiro lugar, ao contrário das culturas primitivas, Javé
é deus único, centralizador, dita rígidas regras de comportamento, cuja transgressão
é sempre punida. Nas primitivas mitologias, ao contrário, a Grande Mãe é permissiva,
amorosa e não coercitiva. E como todos os mitos fundadores das grandes culturas
tendem a sacralizar os seus principais valores, Javé representa bem a
transformação do matricentrismo em patriarcado. O Jardim das Delícias é a lembrança
arquetípica da antiga harmonia entre o ser humano e a natureza. Nas culturas de
coleta não se trabalhava sistematicamente. Por isso os controles eram frouxos e
podia se viver mais prazerosamente.Quando o homem começa a dominar a natureza,
ele começa a se separar dessa mesma natureza na qual vivia imerso até
então.Como o trabalho é penoso, necessita agora de poder central que imponha
controles mais rígidos e punição para a transgressão. É preciso usar a coerção
e a violência para que os homens sejam obrigados a trabalhar, e essa coerção é localizada
no corpo, na repressão da sexualidade e do prazer. Por isso o pecado original,
a culpa máxima, na Bíblia, é colocado no ato sexual (é assim que, desde milênios,
popularmente se interpreta a transgressão dos primeiros humanos).É por isso que
a árvore do conhecimento é também a árvore do bem e do mal. O progresso do conhecimento
gera o trabalho e por isso o corpo deve ser amaldiçoado, porque o trabalho é
bom. Mas é interessante notar que o homem só consegue conhecimento do bem e do
mal transgredindo a lei do Pai. O sexo (o prazer), doravante, é mau e,
portanto, proibido. Praticá-lo é transgredir a lei. Ele é, portanto, limitado
apenas às funções procriativas, e mesmo assim gera culpa. Daí a divisão entre
sexo e afeto, entre corpo e alma, apanágio das civilizações agrárias e fonte de
todas as divisões e fragmentações do homem e da mulher, da razão e da emoção, das
classes... Tomam aí sentido as punições de Javé. Uma vez adquirido o
conhecimento, o homem deve sofrer. O trabalho o escraviza. E por isso o homem escraviza
a mulher. A relação homem-mulher-natureza não é mais de integração e, sim, de dominação.
O desejo dominante agora é o do homem. O desejo da mulher será para sempre carência,
e é esta paixão que será o seu castigo. Daí em diante, ela será definida por
sua sexualidade, e o homem, pelo seu trabalho. Mas o interessante é que os primeiros
capítulos do Gênesis podem ser mais bem entendidos à luz das modernas teorias psicológicas,
especialmente a psicanálise. Em cada menino nascido no sistema patriarcal repete-se,
em nível simbólico, a tragédia primordial. Nos primeiros tempos de sua vida, eles
estão imersos no Jardim das Delícias, em que todos os seus desejos são
satisfeitos. E isto lhes faz buscar o prazer que lhes dá o contato com a mãe, a
única mulher à qual têm acesso. Mas a lei do pai proíbe ao menino a posse da
mãe. E o menino é expulso do mundo do amor, para assumir a sua autonomia e, com
ela, a sua maturidade. Principalmente, a sua nudez, a sua fraqueza, os seus
limites. É à medida que o homem se cinde do Jardim das Delícias proporcionadas
pela mulher-mãe que ele assume a sua condição masculina. Para poder se tornar
homem em termos simbólicos, ele precisa passar pela punição maior que é a
ameaça de morte pelo pai. Como Adão, o menino quer matar o pai, e este o pune, deixando-o
só. Assim, aquilo que se verifica no decorrer dos séculos, isto é, a transição
das culturas de coleta para a civilização agrária mais avançada, é relembrado simbolicamente
na vida de cada um dos homens do mundo de hoje. Mas duas observações devem ser
feitas. A primeira é que o pivô das duas tragédias, a individual e a coletiva,
é a mulher; e a segunda, que o conhecimento condenado não é o conhecimento
dissociado e abstrato que daí por diante será o conhecimento dominante, mas sim
o conhecimento do bem e do mal, que vem da experiência concreta do prazer e da sexualidade,
o conhecimento totalizante que integra inteligência e emoção, corpo e alma,
enfim, aquele conhecimento que é, especificamente na cultura patriarcal, o
conhecimento feminino por excelência. Freud dizia que a natureza tinha sido
madrasta para a mulher porque esta não era capaz de simbolizar de modo tão perfeito
como o homem. De fato, para podermos entender a misoginia que caracterizará a cultura
patriarcal daí por diante, é preciso analisar a maneira como as ciências
psicológicas recentes apontam para uma estrutura psíquica feminina bem diferente
da masculina.Na mesma idade na qual o menino conhece a tragédia da castração
imaginária, a menina resolve de outra maneira o conflito que a conduzirá à maturidade.
Por já ser castrada –isto é, porque não tem pênis (o símbolo do poder e do
prazer, no patriarcado) –, quando seu desejo a leva para o pai, ela não entra
em conflito com a mãe de maneira tão trágica e aguda como o menino entra com o
pai, por causa da mãe. Por já ser castrada, não tem nada a perder. E sua
identificação com a mãe se resolve sem grandes traumas. Ela não se desliga
inteiramente das fontes arcaicas do prazer (o corpo da mãe). Por isso, também,
não há uma cisão de si mesma nem de suas emoções como acontece com o homem.
Para o resto da sua vida, conhecimento e prazer, emoção e inteligência são mais
integrados na mulher do que no homem e, por isso, são perigosos e
desestabilizadores de um sistema que repousa inteiramente no controle, no poder
e,portanto, no conhecimento dissociado da emoção e, por isso, abstrato.De agora
em diante, poder,competitividade, conhecimento,controle, manipulação, abstração
e violência caminham juntos. O amor, a integração com o meio ambiente e com as
próprias emoções são os elementos mais desestabilizadores da ordem vigente. Por
isso é preciso precaver-se de todas as maneiras contra a mulher, impedi-la de interferir
nos processos decisórios, fazer com que ela introjete uma ideologia que a convença
de sua própria inferioridade em relação ao homem. E não espanta que na própria Bíblia
encontremos o primeiro indício dessa desigualdade entre homens e mulheres.
Quando Deus cria o homem, Ele o cria só, e apenas depois tira a companheira da
costela deste. Em outras palavras: o primeiro homem dá à luz (pare) a primeira
mulher. Esse fenômeno psicológico de deslocamento é um mecanismo de defesa conhecido
por todos aqueles que lidam com a psique humana, e serve para revelar
escondendo. Tirar da costela é menos violento do que tirar do próprio ventre, mas,
em outras palavras, aponta para a mesma direção. Agora, parir é ato que não
está mais ligado ao sagrado e é, antes, mais Uma vulnerabilidade do que uma força.
A mulher se inferioriza pelo próprio fato de parir, que outrora lhe assegurava
a grandeza. A grandeza agora pertence ao homem, que trabalha e domina a
natureza. Já não é mais o homem que inveja a mulher. Agora é a mulher que inveja
o homem e é dependente dele. Carente, vulnerável, seu desejo é o centro da sua
punição. Ela passa a se ver com os olhos do homem, isto é, sua identidade não
está mais nela mesma e sim em outro. O homem é autônomo e a mulher é reflexa.
Daqui em diante, como o pobre se vê com os olhos do rico, a mulher se vê pelo
homem. Desde a época em que o Gênesis foi escrito, até os nossos dias, isto é,
de alguns milênios para cá, essa narrativa básica da nossa cultura patriarcal
tem servido ininterruptamente para manter a mulher em seu devido lugar. E,
aliás, com muita eficiência. A partir desse texto, a mulher é vista como a
tentadora do homem, aquela que perturba a sua relação com a transcendência e
também aquela que conflitua as relações entre os homens. Ela é ligada à
natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, domínios que devem ser rigorosamente
normatizados: a serpente, que nas eras matricêntricas era o símbolo da fertilidade
e tida na mais alta estima como símbolo máximo da sabedoria, se transforma no Demônio,
no tentador, na fonte de todo pecado. E ao Demônio é alocado o pecado por
excelência, o pecado da carne. Coloca-se no sexo o pecado supremo e, assim, o
poder fica imune à crítica. Apenas nos tempos modernos se tenta deslocar o
pecado da sexualidade para o poder. Isto é, até hoje não só o homem como as
classes dominantes tiveram seu status
sacralizado porque a mulher
e a sexualidade foram penalizadas como causa máxima da degradação humana. O Malleus como continuação do Gênesis Enquanto se escrevia o Gênesis no Oriente
Médio, as grandes culturas patriarcais iam se sucedendo. Na Grécia, o status
da mulher foi extremamente degradado. O homossexualismo era prática comum entre
os homens e as mulheres ficavam exclusivamente reduzidas às suas funções de
mãe, prostituta ou cortesã. Em Roma, embora durante certo período tivessem bastante
liberdade sexual, jamais chegaram a ter poder de decisão no Império. Quando o Cristianismo
se torna a religião oficial dos romanos, no século IV, a Idade Média se inicia.
Algo novo acontece. E aqui nos deteremos porque é o período que mais nos
interessa. Do terceiro ao décimo séculos, alonga-se um período em que o
Cristianismo se sedimenta entre as tribos bárbaras da Europa. Nesse período de
conflito de valores, a situação da mulher é muito confusa. Contudo, ela tende a
ocupar lugar de destaque no mundo das decisões, porque os homens se ausentavam
muito e morriam nos períodos de guerra. Em poucas palavras: as mulheres eram
jogadas ao domínio público quando havia escassez de homens e voltavam ao
domínio privado quando os homens reassumiam o seu lugar na cultura. Na alta
Idade Média, a condição das mulheres floresce.Elas têm acesso às artes, às ciências,
à literatura. Uma monja, por exemplo, Hrosvitha de Gandersheim, foi o único poeta
da Europa durante cinco séculos. Isso acontece durante as Cruzadas, período em
que não só a Igreja alcança seu maior poder temporal como, também, o mundo se
prepara para as grandes transformações que viriam séculos mais tarde, com a Renascença.
E é logo depois dessa época, no período que vai do fim do século XIV até meados
do século XVIII, que aconteceu o fenômeno generalizado em toda a Europa: a
repressão sistemática do feminino. Estamos nos referindo aos quatro séculos de “caça
às bruxas”. Deirdre English e Barbara Ehrenreich, em seu livro Witches,
Nurses and Midwives (The Feminist Press, 1973), nos dão estatísticas
aterradoras do que foi a queima de mulheres feiticeiras em fogueiras durante
esses quatro séculos. “A extensão da caça às bruxas é espantosa. No fim do
século XV e no começo do século XVI, houve milhares e milhares de execuções – usualmente
eram queimadas vivas na fogueira – na Alemanha, na Itália e em outros países. A
partir de meados do século XVI, o terror se espalhou por toda a Europa,
começando pela França e pela Inglaterra. Um escritor estimou o número de
execuções em seiscentas por ano para certas cidades, uma média de duas por dia,
‘exceto aos domingos’. Novecentas bruxas foram executadas num único ano na área
de Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como. Em Toulouse, quatrocentas
foram assassinadas num único dia; no arcebispado de Trier, em 1585, duas
aldeias foram deixadas apenas com duas moradoras cada uma. Muitos escritores estimaram
que o número total de mulheres executadas subia à casa dos milhões, e as
mulheres constituíam 85 por cento de todos os bruxos e bruxas que foram
executados.” Outros cálculos levantados por Marilyn French, em seu já citado
livro, mostram que o número mínimo de mulheres queimadas vivas é de cem mil. E por que tudo isso? Desde a mais remota antiguidade, as mulheres
eram as curadoras populares, as parteiras,enfim, detinham saber próprio, que
lhes era transmitido de geração em geração. Em muitas tribos primitivas eram
elas as xamãs. Na Idade Média, seu saber se intensifica e aprofunda. As
mulheres camponesas pobres não tinham como cuidar da saúde, a não ser com
outras mulheres, tão camponesas e tão pobres quanto elas. Elas (as curadoras)
eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram também
as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em
casa, de aldeia em aldeia, e as médicas populares para todas as doenças. Mais
tarde elas vieram a representar uma ameaça. Em primeiro lugar, ao poder médico,
que vinha tomando corpo através das universidades no interior do sistema
feudal. Em segundo, porque formavam organizações pontuais (comunidades) que, ao
se juntarem, estruturavam vastas confrarias, as quais trocavam entre si os
segredos da cura do corpo e, muitas vezes, da alma. Mais tarde, ainda, essas
mulheres vieram participar das revoltas camponesas que precederam a centralização
dos feudos, os quais, posteriormente, dariam origem às futuras nações. A partir
do final do século XIII, e com a finalidade de se perpetuar, o poder disperso e
frouxo do sistema feudal para sobreviver é obrigado, a partir do fim do século
XIII, a centralizar, a hierarquizar e a se organizar com métodos políticos e ideológicos
mais modernos. A noção de pátria aparece, mesmo nessa época (Klausevitz). A
religião católica e depois a protestante contribuem de maneira decisiva para
essa centralização do poder. E o fizeram através dos tribunais da Inquisição
que varreram a Europa de norte a sul, leste e oeste, torturando e assassinando em
massa aqueles que eram julgados heréticos ou bruxos. Esse “expurgo” visava recolocar
dentro de regras de comportamento dominante as massas camponesas submetidas muitas
vezes aos mais ferozes excessos dos seus senhores, expostas à fome, à peste e à
guerra, e que se rebelavam. E principalmente as mulheres. Era essencial ao
sistema capitalista que estava sendo forjado no seio do feudalismo um controle
estrito sobre o corpo e a sexualidade, conforme constata a obra de Michel Foucault,
História da sexualidade.
Começa a se construir ali
o corpo dócil do futuro trabalhador, que vai ser alienado do seu trabalho e não
se rebelará. A partir do século XVII, os controles atingem profundidade e
obsessividade tais que os menores, os mínimos detalhes e gestos são normatizados.
Todos, homens e mulheres, passam a ser, então, os próprios controladores de si mesmos,
a partir do mais íntimo de suas mentes. É assim que se instala o puritanismo,
do qual se origina, segundo Tawnwy e Max Weber, o capitalismo avançado anglo-saxão.
Mas até chegar a esse ponto foi preciso usar de muita violência. Até meados da Idade
Média, as regras morais do Cristianismo ainda não tinham penetrado a fundo nas
massas populares. Ainda existiam muitos núcleos de “paganismo” e, mesmo entre
os cristãos, os controles eram frouxos. As regras convencionais só eram válidas
para as mulheres e homens das classes dominantes, através dos quais se
transmitiam o poder e a herança. Assim, os quatro séculos de perseguição às bruxas
e aos heréticos nada tinham de histeria coletiva, mas, ao contrário, foram uma perseguição
muito bem calculada e planejada pelas classes dominantes, com o objetivo de conquistar
maior centralização e poder. Num mundo teocrático, a transgressão da fé era
também transgressão política. Mais ainda, a transgressão sexual que grassava
entre as massas populares. Assim, os Inquisidores tiveram a sabedoria de ligar
a transgressão sexual à transgressão da fé. E punir as mulheres por tudo isso.
As grandes teses que permitiram esse expurgo do feminino e constituem as teses centrais
do Malleus Maleficarum são: 1) O Demônio, com a permissão de Deus,
procura fazer o máximo de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número
possível de almas. 2) E esse mal é feito, prioritariamente, através do corpo,
único “lugar” onde o Demônio pode entrar, pois “o espírito [do homem] é
governado por Deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas” (Parte
I,Questão I). E porque as estrelas são inferiores aos espíritos e o Demônio é
um espírito superior, só lhe resta o corpo para dominar. 3) E esse domínio lhe
vem através do controle e da manipulação dos atos sexuais. Pela sexualidade o
Demônio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade
que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável
de todos os homens. 4) E como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade,
elas se tornam as agentes por excelência do Demônio (as feiticeiras). E as mulheres
têm mais conivência com o Demônio “porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão,
portanto, nenhuma mulher pode ser reta” (Parte I, Questão VI). 5) A primeira e
maior característica, aquela que dá todo o poder às feiticeiras, é copular com
o Demônio. Satã é, portanto, o senhor do prazer. 6) Uma vez obtida a intimidade
com o Demônio, as feiticeiras são capazes de desencadear todos os males, especialmente
a impotência masculina, a impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas,
abortos, oferendas de crianças a Satanás, estrago das colheitas, doenças nos
animais etc. 7) E esses pecados eram mais hediondos do que os próprios pecados
de Lúcifer quando da rebelião dos anjos e dos primeiros pais por ocasião da queda,
porque agora as bruxas pecam contra Deus e o Redentor (Cristo), e portanto esse
crime é imperdoável e por isso só pode ser resgatado com a tortura e a morte. Vemos
assim que na mesma época em que o mundo entrava na Renascença, que resultará no
Iluminismo, processou-se a mais delirante perseguição às mulheres e ao prazer.
Tudo aquilo que era embrionário no segundo capítulo do Gênesis torna-se agora
sinistramente concreto. Se nas culturas de coleta as mulheres eram quase sagradas
por poderem ser férteis e, portanto, eram as grandes estimuladoras da
fecundidade da natureza, agora elas são, por sua capacidade orgástica, as causadoras
de todos os flagelos a essa mesma natureza. Sim, porque as feiticeiras se encontram
apenas entre as mulheres orgásticas e ambiciosas (Parte I, Questão VI), isto é,
aquelas que não tinham a sexualidade ainda normatizada e procuravam impor-se no
domínio público, exclusivo dos homens. Assim, o Malleus Maleficarum,
por ser a continuação
popular do segundo capítulo do Gênesis, se torna a testemunha mais importante
da estrutura do patriarcado e de como essa estrutura funciona concretamente
sobre a repressão da mulher e do prazer. De doadora da vida, símbolo da
fertilidade para as colheitas e os animais, a situação se inverte: a mulher é a
primeira e a maior pecadora, a origem de todas as ações nocivas ao homem, à natureza
e aos animais. Durante três séculos o Malleus
foi a bíblia dos Inquisidores
e esteve na banca de todos os julgamentos. No século XVIII, quando cessou a
caça às bruxas, houve grande transformação na condição feminina. A sexualidade
se normatiza e as mulheres se tornam frígidas, pois orgasmo era coisa do Diabo e,
portanto, passível de punição. Reduzem-se exclusivamente ao âmbito doméstico,
pois sua ambição também era passível de castigo. O saber feminino popular cai
na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino
já solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média
e passam a transmitir voluntariamente aos filhos valores patriarcais então já totalmente
introjetados por elas. É com a caça às bruxas que se normatiza o comportamento
de homens e mulheres europeus, tanto na área pública como no domínio do
privado. E assim se passam os séculos. A sociedade de classes que já está
construída nos fins do século XVIII é composta de trabalhadores dóceis que não questionam
o sistema. As bruxas do século XX Mais de dois séculos após o término da caça às
bruxas, podemos ter uma noção das suas dimensões. No final do século XX, o que
se nos apresentou como avaliação da sociedade industrial? Dois terços da humanidade
passam fome para o terço restante superalimentar-se; além disso existe a
possibilidade concreta da destruição instantânea do planeta pelo arsenal
nuclear e, principalmente, a destruição lenta mas contínua do meio ambiente, já
quase sem retorno. A aceleração tecnológica mostrasse, portanto, muito mais
louca do que o mais louco dos Inquisidores. Ainda no fim do século XX, outro
fenômeno estava acontecendo. Na mesma jovem, rompem-se dois tabus que causaram
a morte das feiticeiras: a inserção no mundo público e a procura do prazer sem
repressão. A mulher jovem liberta-se, porque o controle da sexualidade e a
reclusão ao domínio privado formam também os dois pilares da opressão feminina.
Assim, as bruxas são legião a partir do século XX. E são bruxas que não podem
ser queimadas vivas, pois são elas que trazem, pela primeira vez na história do
patriarcado, os valores femininos para o mundo masculino. Esta reinserção do
feminino na história, resgatando o prazer, a solidariedade, a não competição, a
união com a natureza, talvez seja a única chance que a nossa espécie tenha de
continuar viva. Creio que com isso as nossas bruxinhas da Idade Média podem se
considerar vingadas!