quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Pequena Crônica - Tertúlia - 26 de outubro de 2022

 26 de Outubro - Pequena Crônica - Tertúlia





Manhã de um dia qualquer. Dia neutro. Dia cinza. Preciso sair de minha clausura de três ou quatro dias. Minha solidão causa uma angústia desgastante. Minha respiração está opressa neste interregno eremita, mais ainda porque tenho intensificado minha condição de fumante inveterado. No autoexílio na casa de móveis arcaicos resta muito pouco o que fazer além de lê, fumar, comer algo e pouco nas horas incertas e dormir sonos assombrados e cheios de interrupções. Mantenho meus custos para a manutenção de minha existência através de um minguado montepio deixado por meu pai. Sou um dos últimos galhos de uma árvore genealógica que foi bem mais frondosa do que hoje e logo logo serie uma galho a ser podado dessa copa.

Saindo da minha bolha  cosmopolita, vou campear mudamente os limitados espaços citadinos. A esta hora equânime há poucos locatários da urbe, mas há vida. Pulsão de vida. Cenas rotineiras. Um cortejo fúnebre passa na rua do cemitério, o sino da igreja católica dobra pelo finado. Sob o campanário há anacoretas que não cessam de propalar silentemente suas jaculatórias. No lado oposto a praça há um pregão de um vendedor de bugigangas. Há ainda por ali outros sitiantes, vagabundos, vendedores de bilhetes de loterias, mães de santos, pastores e meretrizes. Todos no mesmo espaço. Ao boreal dali ficam as casas comerciais onde os clientes gastam despudoradamente seus surrados numerários. Há ainda o Ratisbona bar, um misto de café e restaurante, onde a esta hora tem apenas dois clientes: um casal de meia idade troca carícia cheio de lascívia como se eles fossem os únicos habitantes de um paraíso inóspito.

As cenas se sucedem, o tempo se gasta. E tudo isso que foi registrado por aqui me deixou chato, enjoado e lasso. Preciso voltar para meu recato, para minha bolha. Quero fugir daquilo tudo. Preciso me recolher ao meu eremitério. Preciso voltar para a penumbra. Está no meu ambiente de ar rarefeito incensado pelo fumo que saem de meus cigarros que se fumam por si só.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Reproduzindo Vinicius de Moraes - Invocação à mulher única

 Após assistir a uma vídeo no qual o excelente escritor infanto-juvenil Pedro Bandeira recitava esta bela peça da Literatura de Vinicius de Moraes, resolvi reproduzir por aqui!





Invocação à mulher única – Vinícius de Moraes


Tu, pássaro – mulher de leite! Tu que carregas as lívidas glândulas do amor acima do sexo infinito
Tu, que perpetuas o desespero humano – alma desolada da noite sobre o frio das águas – tu
Tédio escuro, mal da vida – fonte! jamais… jamais… (que o poema receba as minhas lágrimas!…)
Dei-te um mistério: um ídolo, uma catedral, uma prece são menos reais que três partes sangrentas do meu coração em martírio

E hoje meu corpo nu estilhaça os espelhos e o mal está em mim e a minha carne é aguda
E eu trago crucificadas mil mulheres cuja santidade dependeria apenas de um gesto teu sobre o espaço em harmonia.

Pobre eu! sinto-me tão tu mesma, meu belo cisne, minha bela, bela garça, fêmea
Feita de diamantes e cuja postura lembra um templo adormecido numa velha madrugada de lua…
A minha ascendência de heróis: assassinos, ladrões, estupradores, onanistas – negações do bem: o Antigo Testamento! – a minha descendência

De poetas: puros, selvagens, líricos, inocentes: O Novo Testamento afirmações do bem: dúvida (Dúvida mais fácil que a fé, mais transigente que a esperança, mais oporturna que a caridade Dúvida, madrasta do gênio) – tudo, tudo se esboroa ante a visão do teu ventre púbere, alma do Pai, coração do Filho, carne do Santo Espírito, amém!

Tu, criança! cujo olhar faz crescer os brotos dos sulcos da terra – perpetuação do êxtase
Criatura, mais que nenhuma outra, porque nasceste fecundada pelos astros – mulher! tu que deitas o teu sangue

Quando os lobos uivam e as sereias desacordadas se amontoam pelas praias – mulher!
Mulher que eu amo, criança que amo, ser ignorado, essência perdida num ar de inverno.
Não me deixes morrer!… eu, homem – fruto da terra – eu, homem – fruto da carne
Eu que carrego o peso da tara e me rejubilo, eu que carrego os sinos do sêmen que se rejubilam à carne

Eu que sou um grito perdido no primeiro vazio à procura de um Deus que é o vazio ele mesmo!
Não me deixes partir… – as viagens remontam à vida!… e por que eu partiria se és a vida, se há em ti a viagem muito pura

A viagem do amor que não volta, a que me faz sonhar do mais fundo da minha poesia
Com uma grande extensão de corpo e alma – uma montanha imensa e desdobrada – por onde eu iria caminhando

Até o âmago e iria e beberia da fonte mais doce e me enlanguesceria e dormiria eternamente como uma múmia egípcia

No invólucro da Natureza que és tu mesma, coberto da tua pele que é a minha própria – oh mulher, espécie adorável da poesia eterna!