Airton Monte - O Gato Morto - 26 Abril de 2011
Quem sabe, alguns dos meus leitores ainda guardem na memória uma crônica que escrevi, faz uns poucos dias, em que falei de um gato preto, enorme, de olhos faiscantes, que caminhava garbosamente sobre o muro do meu quintal todo final de tarde. Ontem, ao dar minha costumeira caminhada em volta do quarteirão, ao dobrar a primeira esquina, encontrei-o morto, a cabeça esfacelada, estirado no meio do asfalto, atropelado por um carro. A princípio, não o reconheci de tão mutilado que estava. Tomado por um impulso mórbido, aproximei-me daquela esmagada massa inerme, coberta de sangue. Percebi tratar-se do mesmo gato, apesar dos estragos causados pelos automóveis que continuavam passando sobre seu corpo. Sim, não havia dúvidas. Era o mesmo gato, tive a mais completa certeza.
Deixei-me ficar ali parado, olhar grudado naquele bicho morto, entranhas à mostra, dentes arreganhados e olhos abertos como se estivesse vendo algo que os bichos vivos são incapazes de ver. Quando me deparei com a trágica cena(porque a morte de qualquer vivente, seja homem ou animal, sempre me parece impregnada com ares de tragédia)primeiro me veio à mente um pensamento esdrúxulo. Caso for verdade que um gato tem sete vidas, então esta foi, decerto, a última que foi dada viver a este especial bichano. Depois, pensei como ele se deixou ser colhido por um automóvel, pois todos sabem da esperteza dos felinos, do quanto são dotados de um poderoso instinto de sobrevivência, de rápidos reflexos e de velozes movimentos. E o quanto é difícil atropelá-los, mesmo que seja essa a cruel intenção do motorista, pois existe gente que gosta de matar por pura diversão.
Enquanto estava ali, imóvel, encostado na parede defronte ao bar, lembrei-me de uma frase de Thomas Browne:”A vida é uma chama pura, e vivemos sob a luz de um sol invisível que temos dentro de nós”. Dentro do gato morto o sol já não brilhava como dantes. Apagou-se, soprado para nem sei onde pelo negro vento do grande nada. Deu-me vontade de tirar o corpo do gato do meio da rua, arrastá-lo para a proteção da coxia, ir pegar em casa uma pá, colocá-lo em um saco e dar-lhe um enterro decente no primeiro terreno baldio que encontrasse. Porém, o nojo, a repulsa impediram-me de fazer o caridoso gesto. Cansado de olhar os restos do animal, segui o meu caminho, andando rápido, passadas largas, sem olhar pra trás, feito um soldado que abandona o posto na hora da batalha, com a sensação de covardia dos desertores.
Passou um, passou dois, passou três dias. Esquecido do fato, quando entardeceu, comecei a sentir falta de algo na vespertina paisagem. Era a ausência do gato. Os passarinhos lá permaneciam, chegando e pousando sobre os fios com lírica pontualidade. O gato, não. Foi aí que me lembrei num relance. Ele não viria nunca mais. No mesmo momento, bateu-me uma tristeza mansa, uma saudade suave, mas nem por isso menos dolorosa. Eu e o gato não éramos amigos nem velhos conhecidos. Apenas nos olhávamos demoradamente quando ele passava diante dos meus olhos mal o sol ameaçava se pôr. Nada mais que isso. Ambos fazíamos parte do mesmo cenário vesperal. Por que então me vinha essa saudade agora? Explicá-la, juro que não sei. Talvez meu coração esteja pleno de mistérios por mim desconhecidos, que nem o coração de todos os poetas, por mais pobre o estro que possuam. Quiçá, melhor que assim o seja. Feito a saudade de um gato morto.
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