Airton Monte - Lucidez - 12 Maio 2011
Enfeitando o domingo, a tarde nasce com uma cara de Mona Lisa aborrecida, enjoada, cansada de ser Mona Lisa para todo o sempre. Talvez porque os poetas de parco talento e paupérrimo estro usam e abusam dessa gasta metáfora. Portanto, seria preferível escrever que a tarde nasceu simplesmente tarde, como a manhã foi manhã, mais nada. Manhãs, tardes, noites tratam-se apenas de fenômenos naturais a que os olhos dos homens estão habituados a ver a cada dia que surge e passa como passam todos os dias. Pelo menos enquanto a vida ainda permanece pulsando em nós até que a morte pingue o ponto final na graça de existir, acabando com a festa quando mais se espera que ela seja interminável. Que tola ingenuidade. Que ilusória pretensão. Que vão desejo. Que sonho infantil. E como dói reconhecer a nossa finitude, apesar do conto de fadas que nos contaram na meninice e acreditávamos nas doces mentiras dos adultos.
De um restaurante perto de minha casa vem uma sequência enjoativa de canções entoadas por um cantor de churrascaria um tanto desafinado, desfiando um paulificante repertório de cantigas açucaradas que só falam de traições, de amores perdidos, de embriaguez, de trágicas paixões. Temas tão repetitivos que só me provocam tédio sem tamanho. Para meu indisfarçável alívio, finalmente o suburbano trovador encerra seu show e vai apoquentar os ouvidos, roubar a paciência de outras vítimas em outras pairagens que espero bem distantes. Um pouco de silêncio volta a reinar na rua, me devolvendo a paz surrupiada sem dó nem piedade. Resto sozinho com meus pensamentos vadios e minhas ideias errantes. Um casal de rolinhas pousa em meu quintal à procura do almoço, que hoje parece difícil conseguir. Decepcionadas por sequer encontrar uma migalha no meio do cimento armado, logo alçam voo e desaparecem da minha vista. Entristece-me não haver sido um bom anfitrião para as visitantes aladas.
No céu, há pouco vestido de claridade solar, paira um bando de nuvens escuras, súbito. É. Para meu desgosto parece que vai chover. No horizonte de quem desejava luz, transparência, translucência, agora começa o reino das sombras desagradáveis, indesejáveis. Feito um moleque brincando de esconde – esconde, o sol reaparece, acendendo o meu olhar e meu bom humor. Quem pode entender essa mulher incomparável, mas volúvel, chamada natureza? Quanto mais eu, incapaz de entender a mim mesmo e minhas circunstâncias. A tarde é mulher, a noite é mulher, a chuva é mulher. O mar é mulher, descobri cedo e fiquei aliviado por não ter passado a vida apaixonado por um ser demasiado imperfeito que nem eu. Quem me contou ser o mar mulher foi um velho jangadeiro do Mucuripe enquanto bebíamos uma garrafa de cachaça em uma noite de lua cheia. Fiquei numa felicidade de menino ao ganhar sua primeira bola de couro, sua primeira bicicleta.
Escuto o estourar dos fogos e o passar dos zoadentos torcedores rumo ao estádio Presidente Vargas. Afinal, nesse domingo o Ceará pode sagrar-se campeão, findo o cotejo. Embora eu torça ferozmente a favor da alvinegrina derrota como qualquer tricolor da gema. Meu radinho de pilha permanecerá desligado, guardado no fundo da gaveta, fazendo companhia ao glorioso manto do Fortaleza. Nesse momento, me bate uma vontade inexplicável de escrever, na alvura do muro que me circunda, as palavras Liberdade e Poesia em letras garrafais, de um vermelho berrante. Deixo-me imóvel, sentado na cadeira até o estranho impulso sumir da minha mente. Estarei endoidecendo de vez? Não, de modo algum. Minha sanidade mental continua quase perfeita, embora saiba que certos dissidentes afetivos cultivam lá as suas dúvidas. Por mim, podem penar o que bem quiserem. A eles, a minha total indiferença. Chego a delirar de tamanha lucidez.
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