Escrevo pouco, crio menos ainda, copio bastante e as vezes construo períodos em língua de Camões sem muita lógica e para satisfazer meus prazeres bestiais e ocultos
quarta-feira, 29 de junho de 2011
Airton Monte - Endereço errado - 27 Junho 2011
Em pleno feriado de Corpus Christi, a manhã apareceu no céu parquelandino com a cara estremunhada de sono, pachorrenta, nuvens chuvosas toldando o horizonte. O sol mostrando, para minha irritação, uma aparência tímida, diria mesmo preguiçosa, feito um Macunaíma celestial. Engraçado, nos feriados costumo despertar mal os primeiros raios solares brotem, apressados, atravessando as frestas da cortina que vela a janela do meu quarto de dormir. Manias do meu cronometro biológico, mesmo que eu tenha permanecido acordado até alta madrugada, premido pelas garras impiedosas da insônia ou simplesmente assistindo a um filme de aventura na televisão, lendo, rabiscando besteiras no meu caderno de apontamentos, pensando nos imponderáveis acontecimentos do amanhã. Toda véspera de feriado, já sei que tenho um inadiável encontro marcado com o raiar do alvorecer, quer queira, quer não, esteja doente ou gozando de higidez.
Levantei-me da cama num pulo só, ágil como um felino, exageros à parte. Dei um prolongado mergulho em minha piscina vertical, que o vulgo chama de chuveiro, tomei o café da manhã, folheei os jornais do dia, fui até a caixa dos correios verificar a correspondência. Por entre o amontoado de boletos das contas costumeiras, cujos envelopes nem cheguei a abrir para evitar possíveis aborrecimentos e preocupações, deparei-me com um folheto bem impresso que me provocou, após lê-lo, uma espantosa surpresa. A princípio, pensei que os remetentes haviam errado de endereço, porém ao ver meu nome impresso no alto do papel, dissiparam-se todas as minhas dúvidas. Parece mentira, todavia valeu o ancestral ditado que afirma verazmente que de onde menos se espera é que sai. E saiu. Imaginem vocês que uma otimista construtora mandou-me um afável prospecto publicitário repleto de atraentes promessas, dessas de encher os olhos e acender os desejos consumistas de qualquer cristão, inclusive dos mais desconfiados.
O atraente e multicolorido informe me passava a seguinte cantada, que à medida que o lia, ia perdendo paulatinamente o interesse: “Caro médico, a dedicação e o empenho são condições imprescindíveis ao bom exercício de qualquer profissão. É o caso da Medicina, que exige uma entrega total, por isso, oferecemos a você excelente oportunidade de comprar o apartamento de seus sonhos”. Ao depois, colocava a minha inteira disposição três supimpas produtos imobiliários localizados em áreas valorizadíssimas do nosso alencarino balneário. Um flat na Praia de Iracema e dois fascinantes apartamentos no coração da Aldeota, um dos quais com quatro principescas suítes, varanda do tamanho do meu quintal, banheira de hidromassagem e demais luxuosos embelecos. Das duas, uma. Ou a construtora ostenta uma santa ignorância quanto à penúria generalizada da maioria dos Hipócrates tupiniquins ou tem um senso de humor negro capaz de matar de inveja o próprio Zé do Caixão.
Quanto custa um desses sonhos oferecidos? Por baixo, uns trezentos mil reais o mais baratinho. Ora, para mim, trezentos mil reais é uma ruma de dinheiro que gente besta não conta. Data vênia, penhoradamente agradeço a honorável lembrança. Acaso papasse a mega sena sozinho, garanto que compraria, num impulso megalomaníaco, logo um prédio inteiro, só pra ser simpático com quem me foi tão gentil. Sem falar no meu sonho recorrente de um sobradinho azul e branco à beira mar plantado numa praia paradisíaca. Nada mal seria pra quem morou a existência inteira de aluguel, carregando, vez em quando, a casa nas costas feito um caramujo. Aliás, uma imprescindível despesa que o generoso Governo Federal não me permite abater da extorsão anual do imposto de renda. Como se salário fosse renda, pois sim. Ah, amigos meus, sou um pobre. Não se trata, de nenhum modo, de queixumes e lamentações gratuitos. Apenas uma óbvia constatação. Nem adianta tentar me consolar com a furada desculpa de que não fico rico porque não quero. A legítima verdade é que jamais enriqueci porque não sei e porque não posso.
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