Outro conto , outra vez bem escrito!!!
Que atire a primeira pedra aquele que, um dia, não pensou em suicidar-se, acabar, dar um fim na própria vida, seja por qual razão ou mesmo sem nenhum motivo sequer. Pode acontecer com qualquer um de nós, pelo menos uma única vez no decorrer da nossa existência, acometer-nos a ideia de perpetrar o chamado “tresloucado gesto”, embora estando a gozar da mais hígida sanidade mental. Vanidade pensar que somente os padecentes de um algum grave transtorno mental ou assediados por problemas para os quais considerem inexistir uma possível solução, chegam a apelar para a saída final do suicídio. Tanto é verdade, que já vi pessoas, acometidas por uma doença que sabem incurável, agarrarem-se com unhas e dentes ao mais tênue fiapo de vã esperança e lutarem até o último momento para que a morte não os leve. E só entregam os pontos quando o corpo não mais possui força suficiente para permanecer resistindo ao chamado da Bela Dama sem Piedade, que finda sempre ganhando a batalha.
Muitos imaginam que histórias, como essa que vou contar agora, são muito raras de ocorrer na realidade, de uma pessoa decidir-se pelo suicídio sem possuir motivos para tanto. Enganam-se. São mais comuns do que se pode pensar. Pois foi o que se deu com o Joaquim. Sentado tranquilamente à mesa da sala do apartamento onde morava sozinho, olhou mais uma vez, demoradamente, os comprimidos brancos, vermelhos, azuis, amarelos espalhados sobre a branca toalha feito um arco-íris de pílulas aparentemente inofensivas e sentiu perpassar-lhe pela base da espinha dorsal um ligeiro calafrio. Suas mãos tremiam um pouco, o coração batia levemente apressado e umas gotinhas de suor lhe orvalhavam a testa. Pudera, era o seu primeiro suicídio. Ergueu-se e foi até a geladeira. Fitou novamente as lisas superfícies coloridas das cápsulas e da distância em que se encontrava delas, pareceu-lhe que se juntavam numa mancha comprida e oscilante diante de seus olhos de suicida de primeira viagem.
Encheu um grande copo de água gelada, colocou-o na mesa. Voltou a sentar-se. Segurou um comprimido. A água dentro do copo refletia sua face suada. A dúvida, não o medo, o espiava com sua enorme presença. O que tinha? Por que não começava a engolir e acabava com tudo? Acaso não acordou possuído pela vontade de morrer? De nada adiantaria ficar com essa cara de Amélia. Ou me mato logo ou não me mato mais, pensou. Estava certo de que queria morrer. Olhou pela janela. Todas as coisas continuavam absolutamente iguais, sem brilho mágico ou aparência fantasmagórica. Não deveria ser assim, demasiado prosaico o dia da sua morte. Nada percebeu de diferente do que já conhecia. Apenas o ronco do mar, a dois quarteirões à frente, parecia mais alto, mais grosso, mais forte. Lá fora, tudo permanecia como dantes, enquanto um copo d’água e um monte de comprimidos encerravam, para ele, todos os mistérios do viver e do morrer, à espera de um gesto seu, completamente imóveis sobre a toalha branca de uma mesa. Que morte mais besta seria a sua.
Levaria tempo até descobrirem seu corpo apodrecido, coberto pelo lixo miúdo depositado por ratos e baratas. O mundo restaria impassível, indiferente apesar de sua morte, que não interromperia a sequência de outras vidas, o girar rotineiro de outros destinos. Tentou manter-se calmo dentro do tempo que pensava inda lhe restar. Ergueu o copo, segurou um comprimido, que ficou quieto na sua mão, viborazinha ansiosa pela presa. Não desejava ter medo dele, seu doce anjo salvador. Pôs na boca. Bastava engolir e escapar da prisão. Súbito, resolveu que não morreria desse jeito, manso feito um boi. Saiu do apartamento. Desceu as escadas como um canguru. Caminhou pelas ruas procurando no olhar de um passante que o reconhecesse como um futuro moribundo. Ninguém lhe deu atenção. Começou a falar em voz alta que ia morrer. Cansado, parou de falar. Voltou à casa. Pôs um punhado de pílulas na boca. Por instantes, segurou a morte na língua. Deu uma cusparada libertadora. Pegou um sonrisal, jogou dentro do copo. Com um sorriso meio apalermado, ficou vendo a zoada bonita que ele fazia se desmanchando entre borbulhas.
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