Por ser um leitor dos mais vorazes desde que aprendi a decifrar o belo, maravilhoso, irresistível universo da palavra escrita, por vezes me assomam ao bestunto variegadas frases, trechos de poemas que já se me tornaram demasiado íntimos. Tanto que, vez ou outra, me confundem os desvãos da memória e eu nem mesmo sei mais direito se fui eu quem os escreveu ou estou perpetrando criminosos plágios dos meus autores prediletos. Por isso, para evitar desastrosos enganos e roubos das ideias e pensares alheios, inventei uma espécie de aparelho mental a que denomino de “bobagímetro”, que apesar do neologismo gritantemente horroroso, me é de muita utilidade. Ajuda-me a separar o joio do trigo em meu cotidiano ofício de escrever, protegendo-me de passar vergonhas inomináveis em público.
Meu utilíssimo bobagímetro mede o índice de bobagens contidas numa frase, numa expressão sobre as quais tenho dúvidas se me pertencem ou não. Quanto maior for o nível de besteirol a pulular no que penso, imediatamente sei que é de minha autoria de modo inegável. Se houver um tantinho a mais de profundidade, de originalidade, posso ir logo tirando o cavalinho da chuva porque certamente é de propriedade de algum outro escritor. Há instantes, bem no meio de uma tarde de domingo, rabisquei no meu inseparável caderno de apontamentos:” A vida é tão bela que chega a dar medo, esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz o jovem felino seguir para a frente farejando o vento”. Após rabiscar tais palavras, fiz uma pausa para meditação, liguei devidamente o bobagímetro, tomando as minhas necessárias precauções de praxe.
Logo cheguei à conclusão óbvia de que uma frase de tamanha intensidade poética e lírica densidade em tempo algum poderia haver nascido de minha parca ideação. Perquirindo a traiçoeira memória, num repente lembrei-me tratar-se de um excerto de um poema de Mário Quintana, um dos poetas que mais costumo citar por ser um dos que mais costumo ler, reler, tresler. Confesso, aos que perdem seu precioso tempo lendo este escriba, que vejo a vida de igual maneira, pois que senão ela careceria de sentido. Da vida nunca senti medo. Da morte, tenho um pouco. Por isso falo pouco da morte e cada vez menos à medida que envelheço. Sim, pode parecer um contra-senso, mas sou mesmo um poço de contradições desde que me entendo por gente. Amo viver no claro-escuro do que penso, do que sinto, do que, em essência, me define dentro do mundo em que habito.
Estou em constante movimento de busca, de procura de algo que não sei bem o que seja, mas que existe, existe. Quem me vê assim parado, imóvel por alguns minutos, algumas horas, mal percebe que ando a viajar pelo meu dentro, a descobrir novos caminhos, lugares maravilhosos ou terríveis e há mais por descobrir, a percorrer, sempre em movimento feito o barco bêbado de Rimbaud, a jangada de pedra de Saramago. Quando enceto essas viagens íntimas, o ir possui mais importância que o chegar, faz-me sentir um homem ilusoriamente livre. O engraçado é que não me aprazem as viagens genuinamente geográficas. Gosto mesmo é de viajar pela alma, sem tirar os pés de minha cidade, meu subúrbio, minha rua. A vida é nova e anda nua, vestida apenas com o teu desejo: sussurra-me o poeta. Eu o ouço, compreendo a mensagem, obedeço. Visto a vida com meus desejos e a acho bela, adoravelmente minha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário