terça-feira, 28 de junho de 2011

Airton Monte - O domingo é meu pai - 2 Junho 2011

Airton Monte - O domingo é meu pai - 2 Junho 2011


Sou um domingueiro vocacional. Gosto tanto do domingo quanto gosto de sorvete de ameixa com maracujá. Mal raia a manhã dominical, saio da cama cheio de um bom humor de quem ganhou na loteria, mesmo que tenha passado a noite de olhos arregalados, grelados por uma insônia mortal. Talvez esse meu amor pelos domingos me venha da infância, porque domingo era o dia preferido de meu pai e eu via seu rosto, geralmente vincado por um ar severo e grave durante a semana, banhar-se de uma felicidade irradiante que contagiava a casa inteira. Manhã cedinho, ainda cochilando no claro-escuro do meu quarto, eu o ouvia cantando no banheiro um samba de Noel ou de Ataulfo Alves com uma alegria incomum que se refletia na sua voz grave, grossa e desafinada de dar dó. O domingo tinha o mágico poder de transformá-lo em outro homem que eu desconhecia, de uma jovialidade abundante do alvorecer ao anoitecer. Nada o aborrecia, o irritava, nem mesmo minhas estripulias de menino levado da breca.

Aos domingos, meu pai tornava-se o pai que eu pensava existir somente nos meus sonhos e que subitamente virava realidade diante dos meus olhos espantados com tamanha transformação. Oito horas em ponto da manhã, me tomava pela mão e rumávamos para a Praça do Ferreira folgadamente aboletados numa jardineira do Prado. Papai comprava os jornais do dia, revistas, um livro ou outro e me abarrotava de guloseimas. Depois, entrava no seu bar predileto pra beber umas cervejas, conversar com amigos, enquanto eu ficava sentadinho no meu canto olhando com indescritível curiosidade aquele homem contando piadas, dando risadas, discutindo futebol, política, falando de outras mulheres que não a minha mãe. Eu, embasbacado, deixava-me observando aquele homem que me parecia, aos domingos, vindo de outro planeta. Dava-me vontade de perguntar-lhe a pergunta que, por medo, só lhe fiz depois de adulto: - Por que você, meu pai, não é assim todos os dias?

Meu coração de criança era incapaz de entender tamanho mistério que envolvia meu pai, aos domingos, numa aura secreta que nos outros dias da semana se escondia, desaparecia como se nunca houvesse existido. Quem sabe, meu pai não seria um super-herói igual aos das revistas em quadrinhos, cuja verdadeira identidade somente se revelava aos domingos? Minha imaginação fervilhava em busca de respostas feito um caldeirão onírico. Para minha profunda decepção, na hora do almoço voltávamos num carro de praça para o vetusto Solar dos Monte, ao invés de virmos voando pelos céus que nem o Capitão Marvel. Após o repasto familiar, meu pai armava a rede branca na varanda, lendo os matutinos, um grande rádio de pilha pousado junto à porta, ligado na programação esportiva, esperando o início de um jogo do Botafogo diretamente do Maracanã. E eu ali, do seu lado, sentado no chão, com um livro entre as mãos, fascinado por aquele homem que eu não compreendia por mais que tentasse e que, aos domingos, era meu pai mais do que em todos os outros dias.

Hoje sei, com perfeita clareza, que herdei o amor pelos domingos por causa de meu pai. E nem precisava de outra explicação. Era nos domingos que eu o encontrava enquanto viveu. É aos domingos que o reencontro depois de morto. É aos domingos que com ele converso nos poucos momentos em que estou sozinho, matando as saudades que nunca morrem e que nenhuma dor agora me trazem, mas doces lembranças filiais. O domingo tem a cara de meu pai, embora faça-me uma falta inenarrável a tradicional macarronada com galinha à cabidela e os saraus lírico-etilico-musicais do vetusto Solar dos Monte. Meu pai já não existe. Porém, a sua ausência, aos domingos, tornou-se uma bela e grandiosa metáfora que cultivo em minha paterna orfandade. Por vezes, tomado de um lírico esquecimento, chego a pegar no telefone para dar-lhe o costumeiro alô. Só então lembro que meu pai já viajou para os campos do além e desligo o Graham Bell com um sorriso nos lábios e um tantinho assim de tristeza na alma.

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