Bela dedicação de Amor- peculiar aos poetas
No Dia dos Namorados apenas namorei, como deve ou deveria ter feito todo namorado. Não porque assim manda a comercial data marcada nos calendários. Namorei porque simplesmente me deu vontade. Logo de manhã cedo, minha mulher, num repente amoroso, tascou-me um sôfrego beijo na boca como há muito não fazia. Surpresa mais deliciosamente agradável há tempos não tinha nem esperava ter em pleno amanhecer de domingo. Nos beijamos, nos abraçamos e só não conto todo o resto que fizemos por haver solenemente jurado guardar segredo, levando os dedos indicadores trançados em forma de cruz aos lábios. Mantendo a tradição, Dona Sônia ofertou-me, além do saboroso carinho, um disco do Chico Buarque de Holanda, saciando-me o corpo e o espírito. Cá por mim, no meu habitual esquecimento, nem me lembrei que era o Dia dos Namorados. Restei-me com cara de tacho e afora as ardentes carícias, nem lhe dei presentes, fosse joia, vestimenta, uma caixa de chocolates sortidos, um livro de Fernando Pessoa. Sequer lhe escrevi um poema, mesmo que fosse um mísero soneto de pé quebrado.
Fervendo de raiva não me ficou a eterna namorada, pois já conhece de cor e salteado todos os meus inumeráveis defeitos. Também pudera. Estamos juntos desde que tínhamos uns verdes, viçosos dezesseis aninhos de idade e sonhávamos todos os sonhares possíveis e impossíveis. Alguns foram gratamente, prazerosamente realizados. Outros tantos ficaram no plano do onírico. Estamos casados há exatos trinta e seis anos. Completamos, pelas minhas duvidosas contas, bodas de sei lá o quê, meu bom Deus. E eu fiz dois filhos nela com todo amor de que sou capaz. Nossa vidinha em comum nem foi um constante piquenique nem um duradouro vale de lágrimas, porque fomos e somos o que tínhamos de ser um para o outro. Em tom de brincadeira, costumo dizer que tenho a inenarrável sorte de ser um homem muito do bem casado. Nenhuma culpa me cabe se minha mulher é mal casada. Sônia é minha cruz amada, porém uma cruz diferente. Ao invés de carregá-la, é ela quem me carrega existência afora. E me diz, galhofeira, com a castanha luz dos olhos seus brilhando, que sou o seu mais doce madeiro.
Poderíamos, nesse doze de junho, ter fugido de casa, só nós dois, a namorar por aí, caminhando pelas ruas de mãos dadas, até chegarmos numa pracinha modesta, mas acolhedora, polvilhada de flores de todas as cores e diante dos olhares espantados dos passantes, a gente se beijaria longamente, despudoradamente como quem descobriu o amor recentemente. Não, ela me disse. Nada de ficarmos completamente isolados do mundo. Antes dividi-lo, vivê-lo, compartilhá-lo com os outros namorados como se reparte um pão, cada um de nós sendo cada vez mais cada um e assim mesmo, nos tornarmos inseparavelmente unos como sempre o fomos. Decidimos não sair do nosso amoroso refúgio para nenhuma comemoração, como se o Doze de Junho não passasse de um dia qualquer, comum, rotineiro e, ao mesmo tempo, dotado de suma importância por ser mais um dia que vivemos juntos. E um dos muitos que ainda viveremos como se fossem os primeiros.
Nós dois aprendemos, não sei se tarde demais ou muito cedo, que amar não significa anular-se diante do outro. Desistir do nosso Eu, amoldar-se, feito uma massa plástica e informe, à ideia e semelhança do outro. Amar, me sussurrou a amada, é entregar-se, é dádiva, ofertório, oferenda, jamais um suicídio do Ego. Quão sábia é minha mulher, ao me falar tais palavras. Falou-me, ainda, que o amor exige um tantinho que seja de mistério, sedução, surpresa, encantamento, espanto, descoberta. E assim, eu e minha namorada avançamos pelo dia adentro, vivendo com intensidade de pura chama o que nos foi sendo dado viver. Nunca existiu, entre nós, receio algum de cruzar essa balouçante ponte entre dois abismos a que chamamos de amor. Falamos do nosso passado com bem humorada saudade das loucuras que fizemos. Falamos do presente e das loucuras que fazemos. E ao chegarmos no imprevisível capítulo do futuro, ambos emudecemos e nos beijamos outra vez como fazem os namorados assim na terra como no céu.
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