quarta-feira, 29 de junho de 2011

Airton Monte - Questão de gosto - 24 Junho 2011

Airton Monte - Questão de gosto - 24 Junho 2011


Não querendo, de modo algum contar vantagem, é um fato raro, diria até mesmo incomum em meu diário lavor de humílimo cronista de província, tentar iniciar uma crônica sem saber por onde começar. Todavia, de quando em vez tal percalço sucede me acontecer. Como ocorre hoje, neste exato momento em que me encontro curvado sobre minha mesa de trabalho. Pois é, são os chamados ossos do ofício. Aliás, esse labor de ter que escrever todos os dias, faça sol ou chova canivetes, é uma sofrida, suada ocupação que não recomendo a seu ninguém, inclusive aos meus poucos dissidentes afetivos, por mais males que eles possam, pensem haver me causado ao longo do tempo. Como costumo repetir em minhas falações, melhor dizendo, em minhas escrevinhações, há dias em que a crônica nasce de parto normal, com uma espantosa naturalidade. Em outros, vem à luz na base do fórceps, depois de inaudito esforço. E em determinadas ocasiões, o parto só chega a seu término apelando para o recurso último da cesariana.

Cansado de tanto bater em inúmeras portas trancadas a sete chaves à procura de um assunto que me salvasse a pátria, acabei bancando um reles ladrão arrombando uma delas usando o pé-de-cabra da vontade, antes que o desespero me assaltasse de todo. Feito um péssimo caçador, de mira descalibrada, atirei no que vi e acertei no que não vi. Brotou-me no exausto bestunto a não muito original ideia de escrevinhar a respeito de velocidade, vendo um comercial de carros na televisão, entre uma e outra telelágrimas. Daí, pensei cá com meus surrados botões, apesar de saber de cor e salteado que alguns de meus leitores(não muitos, assim fervorosamente espero) vão me esculhambar do primeiro ao quinto, ao insistir em falar sobre o tema escolhido: corrida de automóvel. Os adeptos desse “esporte” sapecar-me-ão perversas injúrias, chegando ao cúmulo de atentar contra a moral e os bons costumes de minha finada mãe e da minha senhora.

Entanto, como minha vida é um livro aberto, embora escrito em branco, não posso escusar-me de expor minha pura e límpida opinião e seja lá o que Deus quiser. Por incrível que pareça, sou um daqueles néscios que ainda teimam em usar e abusar da sinceridade, nem que me custe caro, pois gosto de olhar minhas encanecidas fuças no espelho sem resquícios de pejo. Existe em mim uma inamovível ojeriza à corrida de automóveis, a qualquer corrida de semoventes, aliás. Está acima da minha humanamente imperfeita compreensão sentir a mais anêmica emoção em ficar durante horas diante da telinha, galopantemente eletrizado por uma vaquejada motorizada. Onde a máquina torna-se mais importante do que o homem. Onde um piloto de terceira num carro de primeira consegue vencer um piloto de primeira num carro de terceira. Definitivamente não sou admirador de carros desde menino, nem mesmo de um prosaico caminhãozinho de lata. Automóvel só me desperta interesse como meio de transporte, pra facilitar-me o direito de ir e vir, mais nada além disso.

Nas corridas de carro, a viatura é que é, sem sombra de dúvida, a única e verdadeira estrela do espetáculo. É como, mal comparando, se no futebol a bola fosse mais importante do que o craque, inda que sem ela seja impossível jogar. E o que é pior, inimaginável, como se um Zagallo turbinado saísse pelo gramado afora dando dribles de um Garrincha. Qualquer criação do homem, por mais maravilhosa que seja, é sempre menos importante do que o homem que a criou. Outrossim, tenho de render-me às evidências da arquétipa máxima de que questão de gosto não se discute. As corridas de automóveis existem. Dominam a mídia e fazem parte essencial de um imenso mercado onde a grana jorra farta enchendo os bolsos dos pilotos e dos donos do circo. Há quem goste delas apaixonadamente do mesmo jeito que eu amo o futebol. Das corridas de veículos gosta-se ou não e pronto. Eu, particularmente, detesto-as. Nenhuma emoção por mim perpassa ao sentir por um longo par de horas os carinhos de um motor. É ou não é, meu caro Belchior?

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