Airton Monte - Flor da pele - 9 Junho 2011
Infelizmente, percebo que meus olhos já não são os mesmos. Vão envelhecendo comigo como o resto do meu corpo. Ler e escrever tornaram-se uma tarefa mui difícil, complicada, trabalhosa, cansativa. Quase preciso esfregar o rosto no papel para mais claramente enxergar, decifrar as palavras que leio e escrevo. Acho que minha miopia aumentou de intensidade. Também, pudera. Há uns bons quatro anos que não mudo os óculos de lentes arranhadas pelo tempo e por meus descuidos. Na próxima sexta-feira estou de consulta marcada com o oculista. Rezo a todos os santos de minha discreta devoção, especialmente a São Francisco, que não seja um começo de catarata, pois morro de medo de submeter-me a qualquer operação por mais simples que seja. Isso sem contar os gastos inevitáveis que irão onerar ainda mais meus bolsos combalidos. Minha mulher me diz que sou um exagerado, que gosto de fazer tempestade em copo d’água e o que penso ser grave não passará de uma simples troca de lentes como tantas outras que dantes fiz.
Eu, que já nasci portando óculos, faço votos para que a amada esteja coberta da mais santa razão, do alto da cabeça ao solado dos sapatos. Contudo, minha ansiedade é tanta e tamanha, que roubando o mote de uma bela canção do Zeca Baleiro, ando tão à flor da pele que o mais casto e tímido beijo de novela me faz sonhar acordado com ninfas, naiádes e sereias. Ando tão à flor da pele que chego a me sentir todo coração feito o poeta Maiakovski e toda razão me incomoda e toda lógica me dói e em mim qualquer explicação é inútil e vã. Ando tão à flor da pele que choro e gargalho sem carecer de motivo e nada penso, apenas sinto e ouço a voz das emoções. Ando tão à flor da pele que o mais leve soprar de tênue brisa em minha cara magra me parece o tocar suave da mão de minha mãe roçando a minha face vincada de rugas e preocupações. Catarata ou coisa pior será o diagnóstico a me esperar na esconsa curva do destino? Tento afastar de mim os pensares pessimistas a me invadirem o agoniado bestunto.
Súbito, me tomam de assalto fúrias tenebrosas, ódios mortais, mágoas abissais porque ando tão à flor da pele que acabei virando uma indefesa marionete de intensas comoções. Ando tão à flor da pele que me pego acreditando em deuses e demônios tal e qual um cidadão da Idade Média em que se transformou este início de um novo milênio. Só me falta acender uma fogueira no meio do quintal para queimar possíveis bruxas e feiticeiros saídos do meu aperreado imaginário. Ah, quem me dera um pouquinho de sossego, de paz e ambíguo, de repente não desejo nem quero esta paz, este sossego que julgo em demasia ansiados. Catarata será do que ora padeço? Esta maldita, recorrente ideia se recusa a deixar de me atormentar noite e dia, incansável em sua cruciante tortura. Ando tão à flor da pele que quero que meu cérebro seja uma tela de cinema onde se projetem em contínuo movimento imagens, sons, cores, paixões, menos uma cena de uma operação de catarata, a me lembrar a cruenta sequência de uma navalha rasgando um olho no filme O Cão Andaluz, do Luís Buñuel, numa sessão de cinema de arte do Cine Diogo.
Ando tão à flor da pele a colher, a cheirar, tatear, ouvir, saborear. Multiplico meus cinco sentidos por setenta vezes sete e ainda assim para o que sinto é muito pouco porque ando tão à flor da pele, hoje, somente por um único, mísero e maravilhoso dia que bem poderia durar a existência inteira. Pois é, eu e minhas costumeiras contradições. Ando tão à flor da pele que misturo num mesmo cadinho meu medo e meu alívio. Não, não quero que esse confuso estado de espírito dure mais que até a próxima sexta-feira e se dissolva em pleno ar logo que puser os pés fora do consultório do oftalmologista. Catarata será o resultado final de minha esculápica peregrinação? E se forem confirmados meus receios? Ando tão à flor da pele. Até pareço flutuar, desafiando a lei da gravidade, acima dos meus pavores. Sou uma nau à deriva, em meio a um tormentoso mar de sensações estranhas. Ando tão à flor da pele que não há como fugir, fingir que nada acontece quando tudo está acontecendo cá por dentro de uma maneira desesperada. Catarata, será? A pergunta permanece infinda.
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