Airton Monte - Conserva Fiada - 5 de Setembro
Hoje, assim que acordei de um sono estremunhado e sem sonhos, a manhã deu o ar de sua nublada graça com uma cara aborrecida de quem vai ficar gripado. Que nem eu. Havia um punhado de nuvens escuras flutuando lá por cima, ondo o voo dos pássaros não alcança. Felizmente, para meu gáudio, logo o sol apareceu iluminando o céu alencarino do jeitinho que eu gosto. Ah, doces artimanhas da mãe natureza, rainha de todas as imprevisibilidades, que costuma se divertir brincando com os desejos e quereres dos homens, atrapalhando ou facilitando as nossas vidas e nossos dias. Ainda não tenho a menor ideia do modo como vai transcorrer o meu cotidiano. Sei que haverá surpresas e previsibilidades à minha espera tal e qual sempre acontece. Haverá uma longa série de compromissos inadiáveis, impossíveis de serem evitados, obrigações a cumprir nos horários previamente marcados e, se a sorte me sorrir, serei premiado com alguns momentos de liberdade.
Não folheei as páginas dos jornais de hoje para ver as notícias e verificar o resultado da loteria acumulada para saber se sou o mais novo milionário desta Taba de Tupã, em que se fazem fortunas da noite para o dia. E por que não eu seria mais um desses sortudos contemplados pela roleta do destino? Pois então: um dia é de quem perde, o outro é do ganhador. E assim, como bom e legítimo brasileiro que sou, vou me enganando toda semana, arriscando o meu rico dinheirinho no cassino oficial pelas lotéricas da vida, insistindo, persistindo, jamais desistindo porque penso sinceramente que meu dia de tirar o pé da lama há de chegar, sem a menor dúvida. Quem não chora não mama e cobra que não anda não engole caçote. Os amigos, que também jogam nos mágicos números, me chamam de ingênuo por haver me tornado um assíduo jogador de um baralho viciado e por acreditar piamente que, mais cedo ou mais tarde, os volúveis ventos da fortuna soprarão para o meu lado.
E daí? Pergunto eu, o que seria de um homem sem seus mais acalentados sonhares? Nunca abrirei mão dos meus sonhos, mesmo que de vez em quando, eles se transformem nos mais terríveis e apavorantes pesadelos. Sim, claramente reconheço que sou nada mais, nada menos do que uma máquina de desejar e de sonhar desde que me entendo por gente. E não vejo razão nenhuma para mudar, justamente agora que já adentrei os umbrais encanecidos da pior idade. E feito Cecília Meireles, sou dado a ver “pequenas borboletas brancas e amarelas apressando-se pelos ares e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende”. Assim costumo conversar comigo mesmo nos raros instantes em que estou sozinho, disposto a aturar minha própria companhia. Feito as borboletas de Cecília. Entanto, dias existem, e não são poucos, em que me eximo de conversar até com a minha sombra, seja noite, seja dia.
Prefiro ficar na minha, restar isolado num canto qualquer da casa e para isso, nada melhor do que trancar-me no banheiro, tentando inutilmente manter a teimosa cabeçona chata completamente vazia dos mais vagos e vadios pensamentos. Todavia, muito cedo acabei por descobrir ser impossível deixar de pensar um só segundo. Ah, que grande e original descoberta que fiz. É como se eu houvesse inventado novamente a roda. E rio de mim, da minha cara de palhaço de circo mambembe refletida no espelho. Pelo menos, trata-se de um hábito salutar rir de si mesmo, não se levar demasiado a sério em certos necessários momentos e ocasiões. Agora, me deu uma vontade danada de beber o vinho mais caro do mundo, de pé, no balcão sujo e desmazelado de um botequim pé-de-chinelo, misturado aos bêbados habituais que povoam as esquinas dos subúrbios. Decadência, sim. Mas com toda a elegância que me for possível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário