Airton Monte - Livre Viver - 12 de Outubro 2011
Pois então: depois de passar praticamente uns tristes dois meses sem botar os pés fora de meu suburbano tugúrio, a não ser para resolver compromissos e pendências de cunho burocrático referentes à minha oficial pessoa física, além das já tradicionais perambulações pelos consultórios médicos, no azafamado preparo de minha operação de catarata, confesso que estava prestes a sucumbir de um insuportável tédio. Sem exagerar no que digo, virei um prisioneiro de minha própria casa, com datas e horários regulados, cronometrados, marcados para tudo. E assim tornei-me uma espécie de meu carcereiro pessoal, impondo-me regras rígidas e intransigentes. Para a fantasia ficar mais completa, só me faltaram as algemas nos pulsos, uma bola de ferro presa às magérrimas canelas por uma corrente enferrujada e um uniforme zebrado de presidiário. O resto estava segundo manda o figurino dos infelizes encarcerados, apear de usufruir de um certo caseiro conforto para dar-me, pelo menos, um pouco de alívio.
Finalmente, no sábado passado, os amigos do peito, condoídos de minha miseranda situação, generosamente uniram-se em um bendito bando imbuídos da intenção precípua de resgatar-me do meu solitário e infeliz enclausuramento e me proporcionarem algumas horas de divertimento que eu, pra ser o mais sincero que posso, considerei por demais merecido e do qual andava bastante precisado, do contrário minha higidez mental certamente terminaria indo para as cucuias. Desse modo, armados de carinho e de fraternal amizade, arrebentaram as grades de minha prisão e me devolveram a mais que preciosa liberdade, quem sabe a tempo de impedir-me de cometer uma possível insensatez. Como de habitual, fui levado para o restaurante do Ideal, um dos locais de que mais gosto nesta cidade, depois que a Praia de Iracema transformou-se em uma lírica abstração em meu saudoso imaginário poético, inesquecível, romântica habitante de minha memória.
Até hoje, juro que me foge à racional compreensão o fato de alguns companheiros das lutas de outrora e de determinados membros da literária confraria alencarina encararem com um tolo preconceito as minhas esporádicas idas ao Ideal, que classificam reducionistamente como um simples reduto de granfinos, e que, por frequentá-lo, tornei-me um legítimo exemplo de ex-intelectual de esquerda, tendo me rendido de armas e bagagens ao irresistível charme da alta burguesia. Ora pílulas, eu não sei bem como eles chegaram à conclusão de que frequentar o Ideal seja capaz de provocar tão radicais e extremadas mudanças em minhas ideias socialistas. Talvez pensem dessa pífia maneira porque ainda não entenderam que meu maior sonho jamais foi o de socializar o lixo, mas sim, o luxo, a riqueza e não a pobreza. Na minha opinião, todos têm o direito, se assim o quiserem, de misturar a paçoca e o caviar, a champanhe e a cachaça, porque simplesmente não são incompatíveis.
Não estou sendo irônico, sarcástico, muito menos hipócrita quando escrevo o que realmente me vai na teimosa cabeçona chata. Engana-se redondamente quem de mim assim pensar. O que estou sendo é ferrenhamente verdadeiro, pois sou incapaz de trair, alugar ou vender minhas mais profundas convicções. Será tão difícil entender isso? Claro que tenho entranhadas no meu pensar as minhas contradições. E quem não as possui neste mundo povoado de seres tão falíveis quanto nós? Engraçado, quando revelo meus botecos preferidos, percebo que nenhum espanto provoco e recebo uma aprovação geral por ser um boêmio que não foge às suas raízes suburbanas e, digamos assim, supostamente proletárias. Mas no que isso me impede, me proíbe de também gostar do Ideal? Ah, ninguém vai me tirar o enorme prazer de sentar naquela mesa dos amigos, de ouvir o violão do Robston, o piano de Wanda Tahim ao entardecer, de embevecer meus olhos com a visão do mar do Meireles.
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