Ah, esses súbitos e ferozes vendavais de outubro que fazem as janelas tremerem nos caixilhos e as portas baterem estrepitosamente de encontro aos encaixes com o soar estalado de um tiro. Vou caminhando lentamente pelas ruas dessa que ainda considero minha cidade (não sei até quando) a favor do vento, carregando nos bolsos alguns documentos e nas mãos apenas aquilo que o poeta Drummond chamava de sentimento do mundo. Ao meu redor, a cada rajada da ventania, revoam papéis, folhas secas, além dos pequenos sacos plásticos que se alçam mais alto feito pássaros de asas cobertas de imundície. Protejo como posso os meus olhos morrendo de medo que sejam invadidos por um cisco a qualquer momento. Os ferozes ventos de outubro levantam a poeira do chão e espalham resfriados e alergias sazonais a torto e a direito, nos cercando de micróbios variados às mancheias.
A cidade está fervilhando de grevistas como há tempos não acontecia. Greve dos professores, dos carteiros, dos bancários. Greves que parecem infindas, intermináveis que atrapalham e atubibam o já sofrido cotidiano dos cidadãos comuns, como eu, que estamos vendo urso de gola para receber dinheiro, a correspondência, pagar as contas do mês. É tanta gente fazendo greve que só nos falta mesmo as mulheres entrarem em greve de sexo por essa ou aquela razão. E do jeito que as coisas vão nesse Brasil de Mãe Preta e Pai João, eu particularmente de nada mais duvido. Entanto, tentando manter-me alheio à confusão reinante, continuo a minha caminhada rumo à amada Gentilândia para matar as saudades que são muitas e visitar o meu compadre Chico Newton, recém-saído do hospital devido haver sofrido um piripaque no coração, quase tomando assento na barca de Caronte antes do tempo. É, ao que tudo indica, a saúde de nossa geração já não é mais a mesma, pois envelheceu junto conosco.
Felizmente, o velho amigo de tantas jornadas boêmias em nossa tresloucada juventude vai passando muito bem, se recuperando do susto e com o motor cardíaco devidamente recauchutado nos conformes. Mais um condenado à abstenção etílica, exilado da ronda dos bares gentilandinos por tempo indeterminado. Menos mal. Pior seria se houvesse sido banido da vida e agora fosse só saudade no coração da gente. Demorei pouco, porém conversamos bastante. Falamos de tudo que nos vinha à cabeça, menos doença, é claro. Lembramos de nossas aventuras do passado, das noites alegres, das madrugadas bêbadas, seresteiras, das paixões vividas e acontecidas, dos festivos amanheceres em que pegamos o sol com a mão incansavelmente, da pressa que tínhamos de sugar todos os prazeres possíveis da vida como se adivinhássemos os males que nos acometeriam no futuro. Todavia, o importante é que ambos sobrevivemos para contar nossas histórias.
Na volta pra casa, como a tarde inda era jovem, parei numa sorveteria, pedi um creme de maracujá e lá me fui degustar a guloseima pacificamente aboletado num dos bancos da pracinha. Observando os arredores, vi que a Gentilândia pouco mudou nas aparências, porém perdeu demasiado em sua essência de lugar calmo, tranquilo. A violência, a criminalidade ali já cravaram as suas garras implacáveis. Li nos jornais que por aquelas bandas houve dois assassinatos dentro de uma única semana. E que o bucolismo da praça foi quebrado pelos traficantes de drogas que vendem seus malditos produtos na cara de todo mundo. É, meu bom Deus, realmente esta cidade mudou para pior. Nem a Gentilândia é mais um lugar seguro. Tornou-se um território perigoso demais para meu gosto. Então, recordei de uma frase de Guimarães Rosa: ”Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto”. E eu acordei. Quão triste foi.
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