quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Airton Monte - Esse negócio de memória - 29 de Setembro


Mais um domingo acontece em minha vida. Vento solar passando de leve a mão, que sinto ou imagino feito um apressado carinho da mão pesada e calejada de meu pai, quando nas alegres tardes dominicais, um pouco tocado pelo vinho costumeiro, desaguava seu tímido afeto pelo primogênito, pelo fruto do primeiro amor que era eu. Cá entre nós, conterrâneos leitores meus, sinceramente acredito que os domingos foram feitos para acolher as nossas mais belas recordações, as nossas mais doces e suaves lembranças. Os domingos, em minha lírica visão, foram criados para lembrarmos e sermos lembrados, para brincarmos com a nossa memória como um menino, finalmente livre das amarras e das regras caseiras, sai de mansinho de casa para brincar com outros meninos tão libertos quanto ele, inventando jogos e brincadeiras que nem parecem ter mais fim. Somente os domingos, desconheço por qual razão plausível, me dão esta maravilhosa sensação de liberdade.

Não necessito nem careço, tanto no ontem como no hoje, tanto no passado como no presente de me encontrar no meio da rua para me sentir livre. Basta-me um canto sossegado, varrido pelo sol e pela brisa para fazer-me soltar a imaginação de suas âncoras e conseguir viajar por dentro de mim mesmo, por mares nunca dantes imaginados ou por lugares e acontecimentos por demais já conhecidos. É assim que sou, é assim que eu sempre fui desde que me entendo por gente e comecei a descobrir, sem que ninguém me ensinasse, os portulanos que me levam a passear pelo meu mundinho interior. Um espaço demasiado íntimo e que só a mim pertence de fato e de direito e que, quando assim o desejo, posso dividi-lo com outras pessoas por quem guardo o meu afeto. Sou um contumaz viajor dos recantos mais amados de minha alma eternamente inquieta e buliçosa. E tais viagens sem data marcada, sem destino certo são capazes de me proporcionar uma felicidade indescritível.

Há pouco, logo depois do almoço, deu-me vontade de mexer e remexer nas minhas estantes, que vivem em constante desarrumação, à procura de uma pasta de um azul desbotado pelo tempo que eu sabia conter em seu interior empoeirado um maço de originais de poemas que eu já pensava perdidos. Mergulhei na confusão dos meus arquivos e findei por descobrir uma carinhosa preciosidade. Uma caprichosa biografia fotográfica deste escriba presenteada por minha filha Bárbara num dia dos pais qualquer. Folheio a mimosa oferenda filial. Vou sendo levado pelo túnel da memória. Primeiro, vão chegando os cheiros, imagens e sons da infância. A seguir, os personagens, os fantasmas familiares que a povoaram. Refrões dos vendedores de carne, peixe, frutas, verduras. O pipoqueiro, a carrocinha de doce gelado, o menino da tábua de pirulitos, a irresistível melodia do triângulo do homem do “chegadim”. As cinco horas da tarde era a hora mágica onde tudo podia acontecer no pequeno universo da rua Dom Jerônimo.

Cinco horas da tarde. Hora mágica de ser mais do que um garoto feio e cabeçudo. Sentado na calçada, lendo em voz alta as formidandas aventuras de Simbad, o Marujo, para uma plateia de crianças e adultos. Cinco horas da tarde. Hora mágica de esperar pai e mãe chegarem do trabalho trazendo sempre alguma surpresa, mas que apesar de bastante conhecidas e esperadas, sempre me surpreendiam de um modo ou de outro. Livros, revistas de quadrinhos, latas de goiabada Coelho e dos sortidos biscoitos Aymoré. Times de botão, um batalhão inteiro de soldadinhos de chumbo, caixinha de chocolates, mais um volume de Monteiro Lobato, um quebra-cabeças. Súbito, o telefone toca feito uma sirene na sala de visitas. Atendo com uma má vontade dos diabos. Ligação errada. Quebra-se o encanto. Estou de volta à realidade. Tirante a voz de minha mulher, tudo agora me parece tão absurdo, tão sem finalidade e sem grandeza poética. A memória é uma droga perigosa. Principalmente quando se trata de infância.

Nenhum comentário:

Postar um comentário