Para minha infelicidade e atiçando o meu desespero de modesto bibliófilo, os malditos cupins atacaram novamente. Ah, como odeio do mais profundo de meu coração esta maldita e desgraçada raça de insetos devoradores implacáveis de livros. Se fosse por mim, e que se danem todos os ecologistas, tal praga seria sumariamente extinta da inteira face do planeta. Somente assim, na base do “genocídio” como solução final, me seriam finalmente devolvidas a paz e a tranquilidade que essa miserável espécie de insetos costuma, de quando em quando, me roubar com a mais cruel desfaçatez. O único jeito de recuperar o meu sossego por algum tempo foi convocar em regime de urgência urgentíssima os dedetizadores de quem já me tornei um freguês habitual há anto tempo que nem lembro mais.
Bem sei das razões e dos motivos que levam os cupins a abandonarem ou serem expulsos de seu habitat natural para infestarem as cidades, mas pouco estou interessado nisso agora. Agora, o que desejo mesmo é exterminá-los das minhas estantes e do resto da casa com a indispensável e providencial ajuda dos especialistas e ponto final. Passado o temporal e tudo parecendo voltar ao normal, já mais calmo, começo a remexer no meu baú de guardados, onde fragmentos do meu passado e de minha história pessoal restam como amareladas preciosidades. São pedaços desencontrados da memória como peças soltas, desarrumadas de um quebra-cabeças que só eu sei como montá-las novamente, colocando cada uma delas em seu preciso e exato lugar. Entre a multidão de manuscritos, fotografias, recortes de jornais e revistas, encontro um envelope pardo, volumoso. Atraído pela curiosidade, abro-o e para minha surpresa está cheio de escritos de meu pai.
Em sua grande maioria são cartas dirigidas a mim sob forma de crônicas. Leio uma delas: ”Meu filho, hoje levantei-me cedo, era quase madrugada ainda, pois algo me provocou tal decisão. Fui direto ao quintal, onde, de repente, uma mansa brisa me lambeu a face. Vislumbrei a nossa velha cacimba. Aproximei-me e olhei suas águas quase centenárias. Sentei-me às suas bordas e ali fiquei perdido mirando a imensidão azul do firmamento. Estrelas retardatárias inda piscavam sem sair do lugar. Mergulhei num passado distante. Abri o livro da vida e me vieram lembranças que me marcaram para sempre. Porém, foi tudo tão sutil, tão rápido como uma lâmpada que repentinamente se apagasse. Súbito, acordei daquele sonho que me dominava. Já liberto, busquei fazer o que mais gosto: escrever. Manejei a caneta e principiei a colocar em ordem um punhado de palavras. Meu filho, você sabe tanto quanto eu que não escrevemos sempre o que agrade a todos. Por isso, procuro deixar de lado o medo da crítica e da opinião dos outros, feito um livre atirador.
Cada um pode escrever à sua própria maneira, como realmente gosta e lhe satisfaz. O papel nos protege feito o mais fiel dos confidentes de tudo que nos vai na alma, tudo que nos alegra ou entristece, que nos revolta, que nos enternece. Há pessoas, e são tantas, que acham ser um desperdício de tempo essa nossa mania de escrever. Não podem calcular o que significa para nós esses momentos de devaneio em que enleamos por completo o nosso eu. As palavras que nascem de mim e ponho no papel, como as amo, como as quero, filhas que são de minha alma. Escrevo em momentos raros como hoje, ao sentir-me desamparado, sozinho. Não tenho certeza se o que escrevo tem alguma poesia. As palavras vivem em mim e brotam que nem flores, um olho d’água no sopé da montanha. De qualquer maneira, chegará um dia em que minhas maiores riquezas serão minhas lembranças. Serão elas, filho, que me ajudarão a viver”. Dobro a carta, devolvo-a ao envelope e fico olhando a tarde me sorrindo com um sorriso poeticamente igual ao de meu pai.
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