Uma Viagem!!! Genial crônica
Há dias que se afiguram tão inopidamente estranhos, tão esquisitos, tão diferentes dos habituais aos que se está acostumado, que mais parecem um forasteiro, um visitante desconhecido que inesperadamente achou de bater à sua porta sem um aviso antecipado. É, justamente em dias tais quais esses que, súbito, lhe vem um impulso de fazer coisas esdrúxulas como cair na gargalhada, derramar torrentes de lágrimas, cantar um bolero antigo arrancado dos esconsos desvãos da memória(e que você havia esquecido por completo), contar histórias fantásticas em voz alta para uma plateia inexistente, dançar um frevo rasgado vestido à caráter, mentir desbragadamente, gritar em praça pública os seus segredos mais inconfessáveis. As pessoas que, por acaso, estiverem ao seu redor, decerto poderão pensar que você endoideceu de vez, quando na verdade você se sente sangrar de tamanha lucidez. Uma lucidez incomparável e indescritível.
Um dia como esse é especialmente favorável aos pensamentos vastos, libertos da costumeira escravidão da lógica, das razões plausíveis, das motivações racionais, das equações exatas, do dois mais dois igual a quatro, do pão, pão, queijo, queijo. O que agora aparenta ser de uma pétrea solidez pode se desmanchar no ar subitamente sem que tal fenômeno lhe pareça incoerente. Em dias assim tudo é possível e a palavra espanto sumiu misteriosamente do seu dicionário pessoal. E você torna-se incapaz de se assombrar com qualquer coisa que aconteça em torno de sua singularíssima pessoa. Você para por alguns instantes, olha, observa demoradamente o mundo e logo lhe vem a percepção de que o mundo já não é o mesmo, que algo nele sofreu uma inefável mudança. Ou será que foi você quem verdadeiramente mudou? Não, nada de perder tempo procurando respostas que são, pelo menos por enquanto, decididamente inexistentes no aqui e no agora. A hora é de considerar que tudo ocorre dentro da mais incontestável normalidade, por mais inconcebível que lhe seja.
Chega uma hora em que se faz poeticamente preciso procurar no seu baú de guardados, aparentemente de uma inutilidade à toda prova, o seu maravilhoso fantascópio, com o qual você, na infância, viajava livremente para outras dimensões imerso no bojo da fantasia e da imaginação, porque todo menino sabe que o mundo não se resume a só isso que se vê através das lentes tacanhas da realidade. Por que não mergulhar de cabeça em seus devaneios e extasiar-se com os prodígios que deles nascem, sem colocar-lhes empecilhos? Nada demais nem de mal existe no território do imaginário, do ilusório, do irreal, do fantástico, do incrível, do extraordinário, da fantasquice. Isto é, desde que você tenha a consciência de saber por onde está pisando, seguro de que não vai perder o caminho de volta quando bem o desejar. Sim, porque fantasiar, libertar o sonhar acordado trata-se de uma brincadeira muito perigosa para aqueles que não conseguem deixar de ser extremamente racionais o tempo todo.
Quem quiser arriscar-se a brincar dessa maneira, sem ter a mínima experiência, carece de um pouquinho de cuidado e começar devagarzinho como quem entra pé ante pé nas águas de um rio cuja profundidade desconhece. Lembro-me, agora, como o traçado de um mapa, de uns versos de Cecília Meireles: “Lá na distância, no fugir das perspectivas, por que vagueiam, como o sonho sobre o sono, aquelas formas de neblinas fugitivas? Lá na distância, no fugir das perspectivas, lá no infinito, lá no extremo, no abandono. Aquelas sombras, na vagueza da paisagem, dão-me a impressão de vir de outrora, de uma viagem”. Entanto, vez em quando, se lhe assaltar um dia fantasmal, é preciso abandonar, com certa urgência lírica, um livro de Kant no fundo da mais escura prateleira das estantes e esquecer que nada existe se não tiver uma razão de ser e que não seja inteligível. Perder a crença, por alguns momentos, na razão e na evidência das demonstrações empíricas, sem medo de ensandecer, pois ninguém enlouquece de lirismo.
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