segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Airton Monte – Carta ao Poeta – 27 de Outubro 2011


Airton Monte – Carta ao Poeta – 27 de Outubro 2011

Pois é, meu caro e saudoso amigo Rogaciano Leite Filho, como sempre, quando as saudades suas me batem mais forte, mais fundas e mais fecundas, escrevo para você, sob color de crônicas, cartas que nunca mando, mas que talvez você até as receba, seja lá onde você estiver, através dos mensageiros misteriosos que a nossa vã filosofia nem sequer é capaz de supor, imaginar. Desde que você, meu poeta, nos deixou em busca dos etéreos campos do além, que ninguém sabe onde ficam ou se verdadeiramente existem, naquele fatídico dia cinco de março de 1992, tragado por uma terrível doença. Era uma quinta-feira, eu não consigo esquecer esta data nem jamais ela fugiria de minha memória mesmo que eu tentasse dela escapar desesperadamente. E eu assim prefiro permanecer indefinidamente preso à sua lembrança porque você fez e faz parte essencial do meu existir.

Estava eu posto em sossego, aboletado numa das mesas do Cirandinha, costumeiro ponto de encontro de nossa turma de jovens boêmios, por volta de umas nove horas da noite de uma quarta-feira repleta de promessas noturnas a nos esperar pelas esquinas líricas do território poético da Praia de Iracema. Eu entornava solitariamente umas cervejas, esperando a ansiada chegada de uma doce amiga. Súbito, o companheiro Pedro Álvarez adentra o recinto feito um vendaval, senta-se a meu lado e com os vermelhos, marejados me conta de sopetão, com a voz embargada pela intensa emoção que o consumia, que você havia morrido há pouco, mal soara as oito da noite. Na hora não chorei, de minha boca repentinamente emudecida não saiu uma palavra, um tímido gemido, um murmúrio. Naquele momento eu era apenas um homem feito de silêncio e dor, nada mais.
 

Deixei-me fitando longamente o azul escuro do mar do alto daquele terraço de um restaurante que hoje não mais existe e lembrei de um verso triste de Antonio Girão Barroso: “Todos nós envelhecemos e um dia morreremos. Mas a vida é isso, mas felizes somos no minuto que passa, e não nos lembramos da velhice nem da morte, que é fatal”. Porém, você ainda não era um velho, meu poeta. Ia fazer trinta e oito anos dali a três meses. Diabos, eu ia entrar na casa dos quarenta e três e estava vivo. E você morto em solo estranho, exilado no Hospital Albert Einstein em São Paulo. Por aqui ficamos todos nós à espera de notícias suas, que iam chegando de forma desencontrada e dúbia. Umas diziam que você havia melhorado. Outras que seu estado se agravava a cada dia e da verdade sabíamos tão pouco. Entanto, eu sabia que, em virtude de sua enfermidade e da pobreza do terapêutico arsenal da época, você estava irremediavelmente condenado.


Para lhe ser sincero, eu só esperava que sua morte, quando chegasse, fosse misericordiosamente rápida e sem dores, sem sofrimento. Daí, me veio uma cena acontecida no festival ”Massafeira”, no Theatro José de Alencar lotado até a tampa e uma multidão do lado de fora querendo entrar de qualquer maneira. Um policial, sentindo-se acuado, fez menção de sacar a arma. Você, todo vestido de preto, enfrentou o PM e mandou que abrissem os portões. O povo entrou, você subiu ao palco e disse um poema. Essa a imagem que guardo de você, amigo. Também não fui a seu enterro. Tranquei-me em casa, desliguei o telefone e bebi em sua companhia até o sol raiar, numa longa e solitária despedida. Vinte anos depois, sua ausência me dói como em doença. Por isso, vez em quando lhe escrevo cartas tentando encurtar a enorme distância que se abriu entre nós. Você vagando aí por cima e eu aqui embaixo vivendo o tempo que me deram pra viver. Saudade também é uma forma de imortalidade.


Um comentário:

  1. Eu vi também, por Pedro Carlos Álvares, que o fim daquela faixa de edificações, onde estava a Churrascaria Cirandinha, a antiga Boate Madrugada, o nosso, Bar Estrela do Oriente, em frente ao Massapeense - Havia um "Quinha", lá também - foram decididas nas "reuniões com o prefeito Juracy Magalhães, assessores e alguns empresários de alto poder no mundo dos negócios em Fortaleza, no extinto Hotel Colonial, para discussão do projeto de requalificação, da área, na Praia de Iracema".
    É uma grande lástima. Será que não se poderia ter conciliado requinte arquitetônico com preservação da rusticidade de certas vivendas, que pela sua preciosidade histórica, valem muito mais do que edifícios altos, de concreto e vidro temperado que querem virar moda? Além do que pode-se questionar se as desapropriações foram feitas obedecendo aos ditames da justiça, e se houve sensibilidade social em relação aos proprietários menores da área.
    Vi também a heroica trajetória da Dona Zezé, suas alegrias e sua tristeza. Nem a pouca ou relativa e justa influência que ela tinha foi capaz de produzir uma solução mais satisfatória para o seu grupo empresarial e para a sociedade de Fortaleza que freqüentava o Cirandinha.
    O Cirandinha não podia morrer porque foi palco da vida para o consolo da morte entre homens de fibra; da tristeza e também da felicidade, da alegria, dos encontros amigos, dos encontros ternos para o prazer que gera mais vida, em conversas entre muitos personagens que não conheci, mas a quem, de antemão, reputo grande valor, como no episódio em que, em cujas mesas, Airton Monte se aboletou, para jantar, entre a fé e a dúvida, que também nos percorre, mas veio carpir, estimulado pela notícia dada por outro amigo, sob os olhos marejados, e voz embargada, a morte de Rogaciano Leite, que podia ter ido, quem sabe, torcendo pela sua acolhida em um aprazível abrigo, nesse tormentoso cepticismo, para os “etéreos campos do além, que ninguém sabe onde ficam ou se verdadeiramente existem”.
    Indo além das minhas próprias dores, lembrando que a amizade faz os amigos compartilharem alegrais e tristezas, eu me solidarizo com A História do Cirandinha, e com essas emoções aqui narradas, com esse ritmo tão dramático, mas arrefecido bizarramente pelo tripúdio angelical de uma refinada poesia.

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