sábado, 29 de outubro de 2011

Airton Monte - O calendário - 17 de Outubro 2011


Airton Monte - O calendário - 17 de Outubro 2011

Desde quando eu era um rebelde e sonhador adolescente, fui, aos poucos, criando dentro de mim uma espécie de calendário bastante diferente, em sua essência, dos calendários comuns, repletos de datas, desses que a gente costuma pendurar todo começo de ano na parede da cozinha, vizinho à geladeira. Não. O calendário que criei não serve para marcar o tempo simplesmente, a passagem dos dias, dos meses, dos feriados, dos eventos comemorativos dedicados às figuras marcantes do nosso panteão nacional e internacional. Trata-se, em verdade, de um calendário extremamente pessoal, que só possui algum significado para mim e que não tem importância nenhuma para mais ninguém nesse mundo velho sem porteiras. Meu calendário, antes de tudo, pontua minha relação afetiva, sentimental com cada dia da semana, os vários sentimentos e estados de espírito que eles são capazes de me despertar, sem que eu tenha controle sobre tal.
Eu mesmo não sei de que modo ou por que cargas d’água meu calendário íntimo nasceu. Quando me dei conta de sua misteriosa existência, ele já havia se tornado uma estranha e, posso até dizer, definir, uma poética realidade. Cansei de tentar, por muito tempo, perceber, descobrir suas naturais origens e nada consegui encontrar que me apontasse, clara, precisamente, suas raízes, que até hoje permanecem envoltas em um profundo segredo demasiado inacessível, inalcançável pela luz da razão. Claro que não sou uma esfinge, porém tenho cá guardados os meus modestíssimos enigmas, muitos dos quais há muito desisti de decifrar, por haver chegado à conclusão de que seria apenas uma inútil perda de tempo gastar meus sambados neurônios nesta tarefa impossível e de certa maneira vã. Melhor deixar a nascente do meu calendário em paz, seja qual for a região, o território do meu inconsciente de onde brotou. Ele existe e isso me basta, me satisfaz.

Portanto, por enquanto ou definitivamente, é-me suficiente e bastante aprazível sentir a sua inefável presença em minha anima, mexendo com meus sentimentos, meus afetos, meus humores, todos os dias feito um cronômetro espiritual. O calendário veio para ficar comigo até o fim dos meus dias. Disso tenho a mais plena e inabalável certeza, sem lugar para dúvidas estéreis. O meu calendário funciona tal qual agora passo a descrevê-lo. Aos domingos, fico sentimental demais, me dá vontade de compor samba-canção, boleros melosos, trágicos tangos, cantigas puras de ninar gente grande solitária e melancólica, a um passo do suicídio. Às segundas-feiras, dias essencialmente burocráticos, sofro de acessos de rabujice, uma espécie de TPM lírica, cercado de menstruadas musas. Segunda-feira é o dia da verdade, quando a realidade nos cobra os juros cruéis dos pecadilhos do fim de semana, numa implacável punição e que devemos pagar sem direito a reclamações inúteis.

Nas terças, transformo-me num ser pragmático, compenetrado homem de compromissos, obrigações, leitor de horóscopos, a planejar meticulosamente cada passo a dar. Na quarta-feira, bem, quarta-feira todos nós sabemos, é um dia neutro, morno, nem pedra nem tijolo, meio de semana, um exagero de equilíbrio nas ações e pensamentos. Nas quartas, tomamos as grandes decisões, definimos nossas metas, objetivos, fazemos o balanço do de deve e do haver, devendo-se, sobretudo, evitar ousadias. Já quinta-feira, começa a apressar o ritmo vadio do meu coração e despontam-me nas costas um tímidos cotocos de asas. Sexta-feira vem o dia de sonhar, principalmente quando a noite chega trazendo predisposição para o voo, se faz mais forte a atração do corpo das mulheres, um certo quê de luxúria pairando no ar, deixando-me de narinas frementes. Aos sábados, amanheço feito um menino que acordou num parque de diversões. A nada pertenço nem a ninguém. Sou senhor e dono de meus caminhos e me engano com essa ilusória liberdade condicional.


Nenhum comentário:

Postar um comentário