Claro que como sou psiquiatra, bem sou sabedor que nada como uma boa e repousante noite de sono a todos nós se apresenta feito uma imprescindível e necessária garantia de qualidade de vida, seja qual for a idade que se tenha. Todo aquele não agradavelmente acolhido pelos saudáveis braços de Morfeu, passando suas noites em claro, torna-se um infeliz devedor do sono durante todo o resto do dia. E não adianta tentar tirar o atraso hípnico enquanto reina o sol, mesmo que se tranque, se isole hermeticamente em um quarto à prova de som e completamente mergulhado na escuridão mais profunda. Coberto de santa, sapiente razão estava o autor dos meus dias ao afirmar peremptoriamente que a noite foi feita para dormir. Por isso ele costumava se definir como um boêmio diurno, pois chovesse ou fizesse sol, sua peregrinação pelos bares inadiavelmente se findava por volta das seis horas da tarde, só abrindo exceção para as noites de natal e virada do ano.
Infelizmente, não consegui seguir seu hígido exemplo, por haver me transformado num incorrigível boêmio noturno, trocando a luz do dia pela luz da lua desde muito cedo em minha vida. Lembro que, inda menino, costumava ficar gastando precocemente minha visão lendo até altas horas ao lume de uma vela ou de uma lamparina. Ou então, pulava sorrateiramente a janela do quarto e rumava, tomando cuidado para não quebrar o silêncio, pelo oitão até a paisagem cheia de mistérios do quintal nas noites de lua cheia. E lá chegando, deitava-me sobre a tampa da cacimba de barriga para cima, deixando-me a olhar fixamente o céu, perscrutando estrelas, talvez na esperança que nutria em meu infantil imaginário que me aparecesse um disco voador com homenzinhos verdes como acontecia nas aventuras do Bolinha na revista da turma da Luluzinha, um dos meus magazines em quadrinhos preferido.
Para minha terrível frustração, os discos voadores tripulados por homenzinhos verdes jamais me deram o prazer de sua presença. Acredito haver sido por causa dessas fugas noctívagas iniciadas na infância que meu relógio biológico começou a desregular seu natural funcionamento e fui virando, de maneira lenta, quase imperceptível um animal insone, me habituando a trocar a noite pelo dia. Ao adentrar os portais da universidade, os plantões médicos contribuíram sensivelmente para agravar a minha condição de insone profissional. Que me recorde e minhas contas estejam pelo menos parcialmente corretas, foram mais de vinte anos trabalhando à noite não sei quantas vezes por semana. Como todo médico plantonista, cheguei a viver mais tempo nos hospitais do que em casa e fui desenvolvendo meus indigitados hábitos de coruja que até hoje me perseguem como indesejável companhia, que só me deixam em paz se os afugento na base dos tarjas pretas, coisa que procuro evitar a todo custo, só apelando para seu sonífero adjutório quando meu corpo e minha mente não mais suportam o peso das noites em claro.
Uma atitude extrema essa de tomar remédio para dormir, esses viciantes emissários do grego deus do sono, dos quais procuro fugir como o diabo da cruz, mas por vezes não há mesmo outro jeito. Além disso, nos raros momentos de folga, nessa época em que labutava como médico de emergências psiquiátricas, ao invés de guardar o merecido e preciso descanso do labor extenuante, mergulhava de cabeça na esbórnia, me esbaldando em farras homéricas, bebendo em quantidades industriais levado pelas más companhias da alencarina boemia no território livre de Iracema e dos bares gentilandinos. Fui um típico exemplar de estróina da saúde e hoje sofro as consequências desse período maravilhoso que vivi com intensidade. Não tenho distúrbios da memória nem padeço de depressão, males próprios da insônia. Pensar em suicídio já pensei, como tanta gente que dorme bem, uma vez ou outra na vida. Pra ser sincero, o que realmente piora a minha qualidade de vida é a falta de dinheiro, mais nada.
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