Foi assim que a viu. Ali, do seu lado, o vento forte da manhã assanhando verdejantes cabeleiras ao longo da estrada estreita. Ela ao seu lado. O cheiro dela ao seu lado. O vento sacudia-lhe os negrilongos cabelos e havia neles um estranho perfume. Sentia fome dela. Coqueiros à beira mar e pequenas pousadas freqüentadas por casais discretos em sua talvez clandestinidade. Turistas gordos, balofos, com cara de gringo, disparando suas câmeras, capturando, quem sabe, o único instante mágico de suas vidas. Ele pensava, vendo-a quieta, calada, distante, mesmo estando ali do seu lado que, a princípio, percebeu alguma coisa de diferente, de intangível na mulher que já tinha sido dele. Uma parede invisível que o dia foi erguendo com a argamassa da solidão a dois. Um muro que o separava dela, o impedia de falar-lhe com a intimidade de antes, de tocá-la no calor da noite cheio de um desejo maciço e permanente. Nem se sabe quando o fim de tudo começa, por que? Como foi?
Ainda tinha fome dela, que agora mudou-se para o banco traseiro, as pernas bronzeadas saltando fora da bermuda apertada, lendo um romance de Gabriel Garcia Márquez. Um livro que ironicamente fala da eternidade do amor. Quando uma mulher deixa de amar um homem, ele pensava, a primeira diferença que o sujeito percebe é no beijo. Ela beija com os lábios entrefechados, os dentes vedando a intimidade da boca. Da última vez em que se amaram, ele recorda dolorosamente, foi de pé como inimigos. Também desapareceu aquela onda de eletricidade quando, por acaso, o corpo dele roçava no dela na confusão noturna dos lençóis. Ele não mais procurava o corpo daquela mulher que já não o amava, que também não mais ama, embora inda a deseje. Entanto, custava a reconhecer aquela fêmea que se mexia irritada no leito, incomodada pelo toque dele e que se encolhia diante de sua proximidade física, fechando-se como uma ostra.
O homem observa a mulher pelo espelho retrovisor. Ela, nem te ligo, deitada no banco de trás. Que cheiro bom o dela. Uma cruciante tortura deitar todas as noites ao lado de uma mulher para quem seu corpo não passa de um peixe morto e cujo desejo já não acende o desejo dela. Baixa um certo ar de desespero dentro da atmosfera densa do quarto de casal, um ódio morno começa a pulsar no coração do homem inquieto. Que sensação esquisita essa de não mais amar e permanecer desejando essa mulher tão intensamente. Parece coisa de doença, de mandinga. Abjeta rotina de trancar-se no banheiro no meio da madrugada e aliviar-se feito um adolescente. Depois, ir até a sala, ligar a tevê, beber um uísque, acender mais um cigarro. Agora, no carro, janelas abertas, o cheiro dela se confunde com o odor salgado da maresia. Começa a odiar Gabriel Garcia Márquez, esse simpático rufião colombiano por quem ela anda apaixonada ultimamente. Ele sente que odeia tudo que o separa desta mulher agora e sempre.
Ela é uma mulher que desperta ferozmente a sensualidade dele, o sátiro embuçado, oculto por dentro dele, o instinto primitivo do predador cujo destino é caçar sua presa, caçar sua presa. Os dois agora são seres estranhos um ao outro, íntimos inimigos. As mulheres não costumam ser piedosas em seu desamor. Vão despachando o sujeito como quem arranca um esparadrapo de uma ferida purulenta. Tijolo após tijolo, eles dois foram erguendo seus guetos separados nas angustiantes, tensas noites de silêncio. A presença dela é um incômodo. A presença dele um purgante. Daí, ficam brincando de casinha enquanto mentem descaradamente um pro outro adiando o inadiável. Ele pensa na moça bonita que viu numa barraca da Praia do Futuro. A mulher que ele não mais ama continua imersa na leitura. Ele sabe que nenhum dos dois terá coragem de dar o primeiro tiro nesse duelo inacabável. Eu a odeio, falou com a voz do pensamento. Continuou dirigindo o carro com uma doida vontade de fazer uma inútil besteira fatal.
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