quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Airton Monte - O espelho de Alice - 1 de Dezembro 2011

Esse negócio de que amanhã será outro dia por vezes me soa como a mais lídima das verdades contidas nos ditados populares que crescemos ouvindo da boca de nossos pais e que o futuro a Deus pertence. De outras, me parece não passar de uma pura balela que inventamos para amenizar os nossos problemas e as nossas humanas dificuldades. Para mim, que sou naturalmente dotado de um certo ceticismo em relação à sabedoria do sofrido canelau, o dia é sempre hoje. Porque é impossível parar o correr da ampulheta do tempo, este nosso implacável inimigo íntimo. O amanhã vai nos vai exigir outras soluções e novas atitudes diante do que nos aparecer pela frente, ora para nos alegrar, ora para nos afligir, enquanto estivermos vivos. É justamente para evitar inúteis mortificações causadas pelo se e pelo talvez, duas palavrinhas que detesto, que procuro de todas as maneiras focar, concentrar minha atenção e minhas forças no hoje, porque não sou peru para morrer de véspera.

Falando nisso, hoje tive que ir ao banco, uma viagem que me irrita de todo coração, para tentar resolver algumas financeiras pendências, negociando na medida do possível o prazo para o pagamento de papagaios que já estão quase vencidos. Sei que quanto mais dilato o solver das minhas dívidas, mais fico devendo, eternamente preso num círculo vicioso que inferniza a vida dos indigitados insolventes feito eu. Mas, fazer o quê? Deve-se pagar o que se deve por cima de pau e pedra, nem que seja apelando para o velho jeitinho brasileiro, aprendido desde que nascemos e para a boa vontade do gerente desses entrepostos da agiotagem oficializada dentro dos ditames da lei. E assim, saio de asa sobraçando a pasta com os imprescindíveis documentos necessários à postergação dos juros, que certamente me deixarão com as calças na mão. É por isso que dizem ser mais lucrativo fundar um banco do que assaltá-lo e tal afirmativa não se trata, em absoluto, de uma mera figura de retórica nem piada de salão.

Percorrendo o meu caminho rumo ao meu monetário calvário, vou andando pelas ruas prestando atenção em tudo como se houvesse nascido exatamente hoje, agora, nesse justo minuto. É uma sensação que posso descrever como sendo ao mesmo tempo magnífica e inquietante que nem o primeiro coito (eu bem me lembro e como esquecer?) quando o corpo da primeira mulher possuída com uma feroz voracidade aparece aos nossos olhos deslumbrados como um espantoso abismo de luz, de medo e descoberta. A cidade por onde transito, nesse comecinho nebuloso de tarde, num estado de plena iluminação, nem me parece ser a minha, onde nasci, cresci e à qual estou acostumado a conviver desde a mais tenra meninice. Tudo nela é revelação, encantamento, fascínio, estranhamento, espera. Uma canção imaginária solta pelo ar, uma cidade a cantar seus cânticos de guerra e de paz numa fascinante mistura de amor e ódio.

E partindo do ilusório princípio de que nasci hoje, aqui, agora, nesse instante inesquecível, a cidade inteira me surge como nova, embora velhas e caóticas lembranças me perpassem o pensamento de um recém-nascido já adulto. Sou tudo isso que meu deslumbrado olhar observa, constata, confirma e testemunha enquanto rumo em direção ao banco onde reside a mais dura e cruel das faces da realidade. Palavras ainda não escritas dependuram-se em minhas mãos, peixes debatendo-se na ponta de um anzol, pescados por onde passo e vou, pois sei que estou no que mais tarde escreverei, sem nenhuma dúvida. Uma profusão de personagens me acompanha os passos, em meu febril furor de tudo registrar no cofre da memória. Sinto-me um tanto quanto onipotente. Uma onipotência infantil, escandalosamente ingênua, nesta cidade em que me perco e me encontro. Entro no banco. A cidade perde a graça. Transforma-se numa miragem e rescende ao impossível. A porta giratória do banco é o espelho de Alice visto e atravessado pelo avesso.

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