quinta-feira, 17 de março de 2011

Airton Monte - Um Anjo Torto 14 Mar 11

Airton Monte - Dedicada ao poeta Carlos Drummond


Pois teve um Drummond no meio do caminho da minha vida. Um tal de Carlos Drummond de Andrade. Um poeta mais do que moderno: eterno. Ele se dizia poeta menor e de ritmos elementares. Que milagre é Drummond? Que sonho? Que sombra? Um mago? Um bruxo? Uma verruma do mais puro diamante a poesia deste poeta Carlos. Sempre perguntando, indagando, sugerindo. Investigando a vida e o depois da vida exaustivamente. Percebo em Drummond a vitalizante floração do cotidiano, a vivência do homem enfiado no seu tempo, embora a agulha do seu bordado poético vá cerzindo passados, presentes e futuros. Um poeta sem nenhum medo das palavras. Pois quantas palavrinhas marginalizadas do universo poético não foram alforriadas por ele? Mesmo ao mergulhar na subjetividade, quando se escreve, nos conduz além da aparência habitual das coisas, na busca desesperada de uma realidade mais profunda.


Pra mim, Drummond é um mergulhador. Um caçador de pérolas. Sem pejo de sujar as suas asas de anjo torto na lama, no lodo, no limo dos abismos da alma. Soube assumir, com toda a dignidade de um poeta, a sua própria miséria, a sua própria beleza. Que jamais lhe peçam a mordaça da coerência. Um homem livre, sem peias, sem freios. Este poeta ensinou-me que a minha história pessoal, a história de qualquer ser humano pode ser mais bonita que as aventuras de Robinson Crusoé. E que a Terra do Nunca é o território do meu coração. E que dentro de nós há sempre um Peter Pan moleque disfarçado na figura de um senhor de rosto grave, de reto crânio calvo e uns óculos espessos. De ar tímido e olhar irônico. Um sujeito que não xingava a vida, pois sabia que a gente vive, depois esquece. E que a história do homem sobre a Terra está cheia de teias de aranha.


Quando leio seus poemas, sinto-me inevitavelmente confrontado com a humanidade empenhada na infindável luta contra o destino e suas armadilhas. O poeta está sempre a nos propor os dilemas fundamentais do existir, do estar-no-mundo: amor, ódio, beleza, vida, morte entremeados num pano de fundo de angústia, esperança, desespero, solidão, todas as forças poderosas que movem nossas ações que precipitam os acontecimentos, as tragédias, o horror, erros, paixões e violência. Apesar disso, põe sua poesia a favor de um mundo melhor ao mesmo tempo que nos exorta a ter mais coragem de viver em um mundo pior. E que chega um tempo em que a vida é uma ordem. A vida, apenas, sem mistificação. Um tempo em que nos dizemos que de nada adianta morrer, apelar para a fuga sem volta rumo ao nosso freudiano impulso de morte.


Tudo no coração é ceia. Tudo se come, tudo pode ser transformado. Drummond prepara uma canção onde todos nós nos reconhecemos. Uma canção que acorda os homens e adormece a criança que reside no âmago de cada um. O mais é simples barro sem esperança de escultura. A poesia de Drummond a vejo como um ritual de celebração à liberdade, à justiça. Os homens de mãos dadas, prenhes do sentimento do mundo. Este, o verdadeiro poema da necessidade humana. É ou não é, José? O poeta nos fala que o último dia do tempo não é o último dia de tudo. Onde a rosa do povo se despetala. Pode ser feia, suja, desbotada, mas é realmente uma flor. Era preciso que um anjo torto nos revelasse o que já sabemos. Em essência, todos os homens se parecem em qualquer parte do mundo. Quando leio Drummond ilumino-me com sua tamanha poesia. Quando morreu, pensei: o último dia na vida de um poeta não é o último dia da sua poesia.

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