quarta-feira, 23 de março de 2011

Airton Monte - Salão de barbeiro - 21 Mar 11

Sou um desses homens de sorte que não possui razão de se queixar da infância que teve. Menino criado solto no vasto parque de diversões das ruas, ainda pouco frequentadas pelos carros e se podia brincar pelas calçadas, disputar encarniçadas peladas no meio do calçamento pavimentado com paralelepípedos irregulares. O maior risco que corríamos era quebrar um braço ou uma perna ao saltar dos muros ou cair de mau jeito do galho de uma árvore. Ah, havia também pairando sobre nossas cabeças a eventual ameaça de uma surra de criar bicho aplicada pelo cinturão implacável do pai depois de perpetrar uma danação daquelas. Afora isso, depois de nos livrarmos da prisão da escola e da chatice do dever de casa, tínhamos o resto do dia para desfrutar da imensa liberdade que os meninos de hoje desconhecem, coitadinhos.


Quando aprendi a ler, a saber mais das coisas do mundo e da vida, um dos meus lugares preferidos, onde ficava horas seguidas, era o salão de barbeiro de meu avô João Eusébio do Monte, instalado na sala da frente de sua casa. Até hoje guardo intacto na memória aquele local mágico, uma fonte inextinguível de novidades que saciavam muito da minha sede de infantil curiosidade. Dominando o ambiente, reinava a grande cadeira de barbeiro da conhecida marca Ferrante, de uma cor negra, lustrosa na qual tantas vezes me sentei para cortar o cabelo e me sentir tão importante quanto um adulto, embora dali saísse de cabeça quase pelada, um mais que eficaz preventivo contra os piolhos que costumavam infestar a meninada. Inclusive eu, que como todo menino não era muito chegado a tomar banho e geralmente obrigava os que me cuidavam a me banharem à força feito um bicho selvagem.


Defronte à imperial cadeira, havia um grande espelho a refletir imagens como o olho de uma câmera espiã. Abaixo dele, um balcão comprido de jacarandá, onde repousavam os instrumentos de trabalho de vovô. Os vidros de loção, os potes de brilhantina, os pincéis, tesouras, navalhas, os aventais, toalhas de um branco imaculado, os pentes de variados tamanhos, o espelho de mão para que o freguês pudesse apreciar o resultado do corte da cabeleira sob os mais diversos ângulos. Minha avó Maroca cuidava de tudo, da limpeza à contabilidade, além da sua constante presença impor ordem e respeito dentro do estabelecimento. A um canto, perto da janela, um rádio de válvulas sobre uma mesinha irradiando música e noticiários para distrair a freguesia enquanto se cumpria o masculino ritual da barba, cabelo e bigode.


Ninguém entendia muito bem que motivo levaria um menino feio, cabeçudo, usando uns óculos com grossas lentes de míope que quase lhe cobriam a cara inteira, a permanecer tanto tempo naquele ambiente, sentado muito quieto numa cadeirinha, sempre com um livro nas mãos. Se me perguntavam o porquê de eu estar ali ao invés de estar brincando com outros petizes, eu dava respostas evasivas, qualquer uma que me viesse à cabeça, menos a única verdadeira. E mesmo se eu a contasse, dificilmente alguém acreditaria que estava ali apenas para ouvir as histórias da vida real que os fregueses comentavam com meu avô. Fofocas da vizinhança, fatos do cotidiano que eu escutava atento como se ouvisse contos de aventura. O salão de barbeiro de vovô mais parecia uma redação de jornal, de tão povoado de notícias. Mal sabia eu que ali, no salão de barbeiro de meu avô, de tanto ouvir histórias, estava aprendendo a escrevê-las.

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