terça-feira, 15 de novembro de 2011

Airton Monte - Falando da Vida - 4 de Novembro 2011


O momento do dia em que mais gosto de escrever é de manhã bem cedo, mal começa a raiar o alvorecer. De animal noturno, de hábitos viciosamente noctívagos, fui pouco a pouco me transformando nesse animal diurno, madrugador que hoje sou. Claro que ainda amo a solidão e o silêncio acolhedor das madrugadas. Continuo sendo um sócio remido do Clube dos Corujas, uma antiga associação formada por um grupo de amigos que, com eu, padecem cronicamente de habituais ataques de uma renitente e incurável insônia. E que, para passar o tempo, costumam trocar telefonemas tardios, falando em voz baixa, quase murmurando as palavras para não despertar os familiares que dormem seu sono abençoado. Ah, quão saudabilíssima inveja sinto desses felizardos que bastam encostar a cabeça no travesseiro para cair quase instantaneamente em transe hipnótico, num benfazejo sono de pedra.

Portanto, cá estou eu, em plenas cinco da matina, apetrechado de caneta e papel, caçando fugidias palavras para perpetrar a croniqueta diária que me garante o aluguel da suburbana moradia. Como ainda sou um morador novato na rua, os vizinhos talvez até olhem com certo estranhamento, que considero natural, o homem sentado na mesa da varanda, debruçado sobre um grosso caderno, parecendo completamente alheio a tudo e a todos que o cercam. Sei bem que com o decorrer do tempo, irão se habituando com meu jeito de iniciar o dia como tantos outros vizinhos de tantas outras casas de tantas outras ruas em que já morei. E deixarei de ser um objeto de constantes observações, de comentários furtivos como sempre calhou de acontecer. Por enquanto, ainda devem se perguntar o que escreve tanto esse homem magro, de óculos, todo começo de manhã, nesse caderno misterioso.

Aqueles que leem jornais logo decifrarão o mistério que envolve o novo vizinho, tornando-o um alvo da curiosidade coletiva. Não demora muito e logo me tornarei parte integrante da paisagem, um habitante comum da fauna que povoa a José de Barcelos e não mais chamarei a atenção de seu ninguém. Atualmente pouco sei de meus vizinhos e eles menos ainda sabem de mim. Claro que nos damos civilizadamente os bons-dias, boas-tardes, boas-noites de praxe e lentamente assim vamos nos conhecendo melhor dia após dia. Trata-se até de uma questão de segurança, porque nesta cidade demasiado cheia de perigos nunca se sabe quando se vai precisar pedir socorro em caso de urgência. Afinal, o sábio Confúcio há muito me ensinou que o estranho próximo é mais valioso do que o parente longe. Por isso, gosto de exercer a política da boa vizinhança, porque jamais se sabe quando se vai precisar do próximo mais próximo que é ninguém mais que o seu vizinho.

Graças a Deus, a rua José de Barcelos é relativamente calma e seus residentes conseguem desfrutar de uma certa tranquilidade dia e noite. Pelo que pude observar, me parece que a maioria de seus habitantes costuma dormir cedo, apesar de estarmos cercados de churrascarias. Há uma bodega na esquina frequentada por torcedores do meu glorioso Leão do Pici, que constituem a maior parte de sua assídua freguesia. Nada mais evidente que, em outros tempos mais amenos, quando não me encontrava afastado compulsoriamente das alegres lides etílicas, eu também seria um contumaz frequentador desse simpático bar especializado no atendimento de clientes tricolores. Hoje, vejo-me forçado a resignar-me a ouvir as batucadas que se armam a cada jogo do Fortaleza e mesmo quando não os há, todo sábado a pândega corre solta e a ruazinha se enche de carros. Fico bebendo minha cerveja sem álcool como quem toma remédio, com as saudades da boemia batucando em meu coração abstêmio.

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