Memória e Chuva - 29 Mar 11
Tarde chuvosa, nublada, úmida, fosca como o olhar de quem padece de catarata. Chove a intervalos regulares uma chuvinha chata feito uma chave emperrada num cadeado enferrujado, chacoalhando sobre as telhas numa música monótona, cheia de cacofonias. Céu escuro, o sol parece haver tirado um dia de folga deixando a tarde vestida de luto. Há pouco escutei o estrondar dos trovões ao longe, felizmente. Tenho uma indisfarçável ojeriza a dias chuvosos desde os bons tempos de menino porque era obrigado a permanecer trancado entre quatro paredes, sem poder brincar no meio da rua. Tirânico e irrevogável decreto materno por medo de que a água caída do céu me molhasse o corpo raquítico, de saúde frágil, tornando-me uma provável vítima da temida visitinha da asma ao cair da noite.
Eis porque até hoje, já um adorável sessentão, a chuva ainda é capaz de entristecer meu coração, deixando-me gravebundo, sorumbático, impotente por não poder com um gesto mágico de mão mandar o diabo do chuviscado para o raio que o parta feito um Mandrake suburbano. Pergunto-me angustiado, pensando num futuro de ficção científica, quando será que o homem assumirá o domínio do clima, comandando através da tecnologia os elementos da natureza, fazendo-os acontecer ao seu bel prazer. Não, não se trata de restar, aporrinhado por um dia de chuva, acalentando pensamentos loucos, frutos de quem perdeu completamente o juízo, ficando com os mentais parafusos frouxos, sem ter doutor que os atarraxe novamente.
Sei que um belo dia o progresso científico e tecnológico permitirá ao homem realizar façanhas hoje tidas e havidas como inacreditáveis, impossíveis de serem conseguidas tais quais as estou pensando agora enquanto São Pedro abre as torneiras embutidas nas nuvens acima de minha cabeça. Basta-me parar e matutar um pouco a respeito de um passado não muito distante. Quem acreditaria, cerca de uns vinte anos passados, se alguém afirmasse que um dia os telefones deixariam de ser imóveis, fixados em suportes nas paredes ou nas mesinhas da sala de visitas para se transformarem em minúsculos aparelhos que andam de mão em mão, nos pondo em contato com outros semelhantes em qualquer parte do mundo. Só acreditaria na futura existência atual dos celulares quem, como eu, lia as histórias em quadrinhos de Dick Tracy com seu telefone embutido no relógio de pulso.
E a chuva continua mais forte ainda. Só Deus pode entender como é infinda qual está escrito nos belos versos de uma canção popular das antigas e da qual poucos se lembram, pois a nossa memória tão frágil culturalmente falando esquece rápido tantas preciosas joias do nosso brasílico cancioneiro. Que pena. Que baita saudade tenho da época em que se ouvia no rádio canções que tinham mais de três acordes e melodias do mais fino lavor. Não me vejam como saudosista, vivendo aprisionado num passado que só retorna em raros festivais retrô. Saudosista é uma palavra que não me define nem está grudada em mim feito doença. Apenas sinto saudades das coisas boas que vivi, que fazem parte essencial de meu arquivo pessoal e intransferível, sem motivos para delas largar mão. Um homem é sua memória e eu o sou. Menos a memória dessa chuva tediosa que me ensombrece o dia.
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