Mal começo a escrever, me vem ao atabalhoado bestunto um pensamento meio fora de hora. Nada mais, nada menos que as longas tardes de sábado foram particularmente criadas para se conversar com os amigos sem nenhuma pressa, desfrutando o tempo que nos é dado de mão beijada, generosa oferenda. Apenas conversar sobre o tudo e o nada, sobre os assuntos mais importantes e desimportantes (na nossa abalizada opinião, é claro), sobre aventuras passadas e presentes, quer sejam reais ou fictícias, sobre peripécias vividas, trocando ideias, confissões íntimas, piadas, prazeres e sofreres. Falar a respeito da vida e da morte e suas dimensões inesperadas. Não é o que costumam fazer os amigos de longa data quando se reúnem em uma democrática mesa de bar?
Só sei que desses encontros saio de alma lavada e enxaguada, consideravelmente revigorada para enfrentar durante a semana as agruras do cotidiano. No último sábado, apesar da ressaca do réveillon, a cidade já acendendo suas luzes, eis-me a papear, primeiro, com Erle Rodrigues, que há tanto tempo não revia, cuja presença inevitavelmente me premia com uma boa conversa e libertadoras gargalhadas. Vai-se o Erle, lá se vem Audifax Rios. Pensei cá comigo: hoje é meu dia de sorte. A noite avança mais um pouco, despede-se o Audifax não sem antes me ofertar o seu opúsculo:Travessia Rio-Mar. Finalmente, vão se esvaziando as mesas do Flórida e chega a minha vez de dar adeus às armas. Apesar de boêmio, sou pai de família, marido exemplar e dos mais virtuosos, embora seja difícil de acreditar.
Bom voltar pra casa, pro meu mundinho singular, onde tudo é ordem e todas as coisas que me pertencem possuem um nome próprio porque nomeadas por mim. Nada de escrever nas noites de sábado, salvo se premido por uma pertinaz e incômoda urgência. Satisfeito por não ter obrigações nem compromisso com as palavras, concedo às volúveis musas de plantão a sua ansiada folguinha semanal, que elas bem merecem. Sábado à noite, para mim, torna-se sinônimo de leitura, não de oficina de palavras para preencher o vazio do papel. O outro dia domingo nascerá, o dia do inesperado, dos acontecimentos puramente fortuitos. Agora, confortavelmente instalado no alpendre da casa, me acossa um sentimento inquietante, eivado de uma súbita solidão.
Neste exato momento, sou um homem tão só. Percebo-me irremediavelmente só feito um Robinson Crusoé sem radinho de pilha, como certamente diria Nelson Rodrigues e nada, absolutamente nada posso fazer a respeito. Há correntes, grades, trancas, cadeados nos meus sentimentos. Meus afetos foram postos a ferros como remadores num porão de navio, até meu coração esqueceu os idiomas naturais da transcendência. As minhas palavras estão chumbadas no desvão da indiferença por tudo que me cerca. E, por ora, dispensam a existência e a presença do próximo. Por baixo de uma aparente calmaria, as emoções submersas desembestam incontidas, irrefreáveis. Sei que depois tudo isso passa sem deixar vestígios e volto a ser aquele sujeitinho vulgarmente simpático que sempre fui e demonstro. Será mesmo?
Airton Monte - publicada no Jornal O POVO de 6 de Janeiro de 2011
Quanto erudição nessa crônica, grande escritor esse Airton Monte, o mercado editorial poderia ser mais generoso de tal maneira que seus escritos fossem mais divulgados.
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