Pequena crônica – Valete de Ouros
Minha
insônia marcou presença na eterna batalha com meu complexo sono mais uma vez.
Desinteressado em saber da hora do acontecimento, procurei evitar o
relógio e as horas do momento. Silêncio.
Sombras. Breu. Silêncio que é quebrado pelos latidos de meu cachorro no quintal
a fora. Provavelmente o cãozinho vê fantasmas que insistem em cruzar o habitat
do cachorrinho. Aqui dentro de casa todos dormem, menos eu. A insônia é minha
companheira de longa data. Fico divagando por horas a fio, começo a lembrar de
fatos ocorridos no dia anterior, na tarde anterior. Neste momento de total
falta de sono. Lembro que emiti opinião contrária a um ocupante de uma fila do
banco e houve breve desentendimento de parte a parte. Ainda nas lembranças do
dia anterior veio a mente a cena do vendedor de água, do homem que dava milho
aos pombos na praça pública, do estafeta de uma estatal suando em bicas e percorrendo
velozmente as ruas afim de entregar todas as correspondências que enchiam suas
duas mãos. Eu ainda rememorei o agente de saúde pública que visitava
pontualmente a casa dos necessitados de seus serviços. A falta de sono e a
introspecção seguem agora para cenas de um passado mais distante deste presente,
volto a cenas de minha infância, lembro de fatos banais do passado: um passeio
de domingo, um almoço na casa de parentes, a viagem para um lugar distante. Veio
em minha memória cheiros, paladares, imagens, lembranças.
As horas
avançam, as primeiras luzes do dia dão o ar da graça e finalmente saio desta
batalha insana com a insônia. Saio da minha estaticidade e vou perambular pelas
ruas da urbe ladeado pelo meu fiel escudeiro, meu cachorro SRD.
As ruas das
cercanias estão sitiadas por vendedores, mascates, pregoeiros e clientes
necessitados de coisas desnecessárias. Há o vendedor de fígado, o vendedor de hortifrutigranjeiros,
o vendedor de picolés e os cambistas do jogo do bicho que vendem a sorte
ilusória dos vinte e cinco animais.
Passo pela
colina histórica onde outrora passava o trem de passageiros. Da ponta do morro
vislumbro os trilhos paralelos carcomidos pela ferrugem da inatividade. Fico a
imaginar quantas pessoas passaram por aquele trajeto demarcado e limitado do
trem! Quantas almas ali passaram?! Quantas almas que ali passaram já
desencarnaram? Quantos estão por ali procurando o rumo do seu passado?
Sigo meu
itinerário incerto pelas tortuosas ruas e alamedas da urbe, passo rente a
calçada da cadeia pública onde da grade, um encarcerado me solicita penosamente
um cigarro pra saciar seu vício tabagista. De pronto, atendo o pedido do
infeliz. Mas adiante alcanço o frontispício do campo santo que reflete
fortemente a luz do sol desta hora da
manhã, minhas retinas gastas reclamam o excesso de luz refletida e eu me
apresso em sair dali. Sigo em frente e a alguns mais passos a frente observo no
chão de um terreno baldio uma carta de baralho com a face voltada pra cima. A
carta é um valete de copas. Uma carta jogada ao leu, uma simples carta
mas que talvez tenha algum significado para mim. O que ela trás pra mim neste
momento? Uma possível sorte no jogo ou noutras circunstâncias quaisquer? Não
sei dizer ao certo, só sei que eu de imediato mudei a rota de minha caminhada
aleatória e fui em busca da casa de jogo mais próxima, lá adquiri vários
bilhetes da loteria federal! Quem sabe aquela carta de baralho aleatória não
era um presságio que minha sorte estaria no jogo?
Volto para
casa na ilusão do jogo ou de outra coisa qualquer. No tugúrio todos estão de
pé, bem diferente da cena que eu deixei a cerca de uma hora atrás, agora todos
estão prontos para saírem em busca de suas obrigações e afazeres vários. Após a
saída de todos, eu quedo na solidão de minhas introspecções, acompanhado apenas
de meu cachorro vira latas e de meus fantasmas que me perseguem desde sempre.
Estou aqui imaginando, será que ele fez esta caminhada pelas ruas ou foi só no pensamento! Acho que foi só pensamento, pois se chegou em casa quando tudos saiam para suas obrigações, não deu tempo de passa na loteria e preencher um bilhete.
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