Beleza, coragem, medo
No alpendre de casa, curvado sobre a mesa de trabalho, eis-me a postos. Ainda é cedo da noite. Sei que a maioria das gentes está tentando voltar pra casa depois de mais um dia de trabalho. Alguns ficarão no meio do caminho, parados por um acidente ou pela bala de um assaltante. Outros, simplesmente estancaram nos bares de costume e como se trata de uma sexta-feira, certamente esquecerão da hora do retorno, porque fazem parte dessa estranha confraria do vermute, do conhaque e do traçado, como cantava Nelson Gonçalves pelas ondas do rádio. Entre um anestésico e outro se vai levando a vida em qualquer cidade do mundo, porque em qualquer cidade do mundo o ser humano é sempre igual em seus desejos.
Olho o relógio: sete e meia da noite. Tão cedo e tão tarde. Para nada. Para tudo. Ou para coisa nenhuma. Minhas costas doem. Levanto-me, caminho um pouco em torno de mim mesmo como se me procurasse de mim distante. E estou tão perto que, por alguns instantes, nem sequer me vejo. Vou até o jardim. Ergo os olhos. Nuvens esparsas no céu claro. Baforadas noturnas de Deus. Na infância, lembro que perto de casa havia um velho marinheiro. Depois do jantar, ele ficava sentado na calçada, repousando em sua velha espreguiçadeira, fumando seu cachimbo e esculpia a fumaça em diversas formas geométricas. O menino que eu era ficava completamente fascinado e pensava que, além de marinheiro, ela também era um mágico aposentado.
Olho o relógio outra vez: oito horas. Volto a sentar-me à mesa de trabalho. Será que o mundo não é tão vasto e tão vário quanto o penso ser? Que pergunta mais besta, mais boba, mais ingênua essa que me fiz, igual a tantas outras que me faço. Ah, de quanta mesmice não sou eu capaz. De quanta besteira escrita em letras garrafais. Preciso tomar um pouco de tento, lapidar com mais vagar meu pensamento. Burilar um pouco mais palavras, frases, escrever algo que tenha, pelo menos, um modesto quê de original. Meus olhos míopes ardem um pouquinho sob a luz rala que me vem do teto. Retinas gastas que muito viram e preferiram calar como se nada houvessem divisado.
Uma borboleta negra, enorme, pousa na grade do quintal. Sinal de sorte? De mau agouro? Ou apenas um mero acaso? Houve um tempo, bem me lembro, em que eu tinha um verdadeiro pavor de borboletas negras, que o povo chamava de Bruxa. Interessante, hoje não tenho mais. Engraçado, com o avançar da idade, meus medos foram todos lentamente desaparecendo. E viver sem medos torna a vida chata demais. É preciso um tantinho assim de medo para se ter coragem. A coragem e o medo se transformam em coisas tão banais à medida que você se apaixona desmesuradamente pela beleza e apaixonar-se pela beleza nada mais é do que apaixonar-se pela vida.
Airton Monte - Publicada no jornal O POVO no dia 2 de Novembro de 2010
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