Porta retrato, café
amargo e Aritmética
Fim de tarde, a luz natural do astro-rei já começa a dá sinais
de morte, a claridade não é mais aquela de ainda a pouco, a escuridão agora
vence a batalha contra os parcos reflexos da luz estelar. As horas são tristes,
horas de ocaso são tristes, penso em
mortes, morte dos outros , morte minha. Depois de uma tarde inteira na solidão
de minhas divagações, tomo a inevitável decisão de abandonar minha condição e
eremita e resolvo vagabundear pela urbe. Nada de novo no cenário do meu arrabalde,
as mesmas cenas cotidianas que se repetem rotineiramente. Um vendedor de
algodões-doce religiosamente executa seu pregão
auxiliado por uma buzina ensurdecedora. Homens espadaúdos retornam de
suas fainas em um comboio de bicicletas. O vendedor de bilhetes de loterias
ainda tenta vender as últimas cartelas do dia, os últimos sonhos do dia no jogo
da roleta dos bichos! E assim seguem as cenas urbanas da periferia local nesse
momento de quase noite.
Enquanto estou na esquina da igreja Matriz conversando com
amigos, recebo um chamamento daquela
velha amiga de nossa família,uma pessoa que a muito não via.Mesmo distante dá
pra entender que sua convocatória não tomará muito tempo meu. A senhora em
questão solicita que eu lhe tire umas dúvidas a respeito de umas contas que ela
tem com uns mascates, ela não é muito habilidosa em aritmética ( eu também não
muito, mas um pouco mais afeito a números do que ela!) e teme que os mascates queiram passá-la pra
trás na prestação de contas! Ela puxa duas cadeiras e me convida pra sentar, começo
a rabiscar algumas cifras após a explanação contábil da senhora. Os rabiscos
são feitos numa caderneta modesta e de folhas amareladas pelo tempo! Entre um balancete e outro, a senhora oferece
café que prontamente aceito por mim. É um café forte e amargo, que para mim é
de bom grado! Entre uma pausa e outra da contabilidade, por acaso miro um porta
retratos onde está exposto a fotografia da filha da senhora das contas, várias
lembranças vieram ao pensamento. Lembranças boas, lembranças frustradas,
desilusões. Aquele retrato foi suficiente para requentar memórias boas e ruins,
por um instante me desconcertei diante aquela imagem e fiz um esforço tremendo
para não exteriorizar nenhum sinal de abalo ante a mãe da moça.
A contabilidade já estava quase no fim, ainda bem, pois se
não fosse assim minha condição de aritmético-contabilista teria sofrido um
abalo suficiente para fechar o balancete. Um simples porta retratos causou toda
esse desordenamento emocional.
Volto ao lar, tão eremitério quanto eu o deixei a duas horas atrás. Estou
de novo só, divagado, agora muito mais angustiado pelo café amargo, a
aritmética e o moça do porta retratos. Principalmente pela foto dele!
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