quinta-feira, 3 de julho de 2025

3 de julho de 2025 - Artigo de Roberto Amaral




 O labirinto do Brasil por ser

 

“Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo.”
– Darcy Ribeiro, O povo brasileiro.
 

Por Roberto Amaral *
 
A ordem político-institucional herdada da reconstitucionalização de 1988 foi posta em recesso com o impeachment de Dilma Rousseff. Morria ali a Nova República anunciada por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. O golpe de Estado de 2016 se consolidou com o regime-tampão do vice perjuro, ponte para a ascensão do neofascismo, pela vez primeira no Brasil a escalar o poder pela via eleitoral.

O presidencialismo espatifa-se como bola de cristal caída ao chão e, com seus estilhaços, a direita concerta o quebra-cabeça como novo Leviatã: poderoso mostrengo que devora as instituições republicanas e impõe a ingovernabilidade como estágio preparatório do caos, indispensável para a revogação do que ainda podemos chamar de “ordem democrática” – frágil, nada obstante sua permanente conciliação com o grande capital, no que se esmera o atual Congresso, implacável no desmonte do que quer que seja que possa sugerir um Estado de bem-estar social.

Esta é a circunstância que nos domina: um Poder Executivo acuado, impedido de exercer o dever da governança; um Legislativo que não arrecada, mas é senhor dos gastos; uma democracia representativa que prescinde da soberania popular. Um Executivo se esvaindo numa sangria de poder que parece não ter fim, prisioneiro de um Congresso abusivamente reacionário, na tocaia contra qualquer sinal de avanço civilizatório. Em seu nome fala e age sua escória, chorume poderosíssimo que não cessa de crescer em número de militantes, em ousadia e em chantagens contra o governo. O quadro funesto se completa com uma Faria Lima descolada do país e de seu povo: seus interesses deitam raízes em Wall Street. 

Lição dos dias que demoram a passar: no Brasil de hoje, em cenário no qual o centro e a social-democracia (depois da falência dos liberais) aderiram ao conservadorismo larvar, a direita e a extrema-direita governam independentemente do resultado das eleições que ainda se realizam – as quais, assim, deixam de ser decisivas, e sobretudo deixam de ser instrumento de mudança, pois qualquer mudança que não aprofunde a exploração de classe será vista como subversiva da ordem na qual a classe dominante (que também atende pela alcunha de “mercado”) se alimenta.

O processo eleitoral é mantido e, por seu intermédio, a soberania popular conserva seu direito de fala. Mas a única voz realmente ouvida é a do sistema. E assim ele é mantido porque somente são permitidas as mudanças que asseguram que nada mude. A ordem se sobrepõe ao movimento, e a promessa de futuro é a regressão.

Por fim, somos um país impedido de ser. Esta é a contradição fundamental entre a necessidade de um projeto de país – de que carecemos desde a raiz colonial – e os interesses da classe dominante, governante desde sempre. Nosso mal de origem.

O variegado campo da esquerda em crise, governante ou não, enfrenta o rescaldo de nossos erros: os muitos erros táticos e os graves erros estratégicos, como o de não havermos compreendido o processo histórico e, assim, havermos fracassado como instrumento de mudança. Nem revolução, nem reforma. Somam-se quase quatro mandatos de quadros da centro-esquerda controlando a Presidência da República – neles vivendo a ilusória sensação de poder! – e, ao fim e ao cabo, quando os sinais de hoje sugerem novas ameaças à nossa liderança, nenhum abalo no sistema de poder temos por registrar. Permanecemos jungidos pelo patrimonialismo.

Nenhuma reforma – nem as reformas estruturais prometidas e necessárias, nem as reformas exigidas pela necessidade de modernizar o capitalismo dependente, que transita do projeto industrialista para o reino do agronegócio fundado nas exportações de commodities e matérias-primas in natura. Nem a reforma política, nem a reforma social – razão de nossa existência. Tampouco a reforma eleitoral, ou a reforma do Judiciário, ou uma reforma fiscal que penalize o rentismo e proteja os assalariados.

Entre nós, quem faz as reformas é a direita: a reforma previdenciária, a trabalhista, a reforma administrativa (em curso) – por óbvio, à feição de seus interesses de classe. 

Conservamos intocadas as estruturas herdadas em 2003, e intocadas as entregamos à direita em 2019, e caminhamos para de novo devolvê-las intocadas à direita em 2027. Confundindo recuo permanente com habilidade política, trocamos o avanço pela conciliação e, de tanto perseguirmos acordos com as forças dominantes, nos vemos hoje apartados de nossas bases sociais originárias. Os marqueteiros do terceiro andar do Palácio do Planalto não sabem explicar a crise de popularidade do presidente Lula.

Eleito em 2022, a duras penas, mas renovando o compromisso de resgatar a imensa dívida social do Estado brasileiro, e tendo diante de si uma extrema-direita que acumulava – como acumula ainda – condições objetivas e subjetivas de voltar ao poder (assim reeditando a longa noite bolsonarista – que não pode ser esquecida, embora represente uma memória dolorosa), o presidente Lula teria tudo para não se auto imolar no altar do rentismo. Pesaram mais, porém, as condições desfavoráveis sob as quais assumiu, e o antigo líder sindical, tido e havido como bom negociador, se afirma sobre o estadista.

O governo é presa do “ajuste fiscal” – o mantra do sistema que se impõe contra qualquer expectativa de desenvolvimento, conditio sine qua non para qualquer projeto de geração de emprego e renda, as carências fundamentais de nosso povo.

O sistema econômico é dominante porque seus mecanismos – objetivos e ideológicos – pervadem toda a estrutura econômica, social e política. A privatização é um processo econômico, mas também um processo político-ideológico, que não se mede apenas com a transferência do controle acionário do Estado para o setor privado, mas se revela, fundamentalmente, quando a política submete a gestão pública à lógica das corporações privadas.

É a vitória do neoliberalismo regendo um governo originário das lutas dos trabalhadores, porque a esquerda no governo assimila os padrões político-ideológicos do mundo que sonha, ou sonhou, pôr por terra – como o colonizado reproduz a ideologia do colonizador, o dominado se põe a serviço do dominador – e assim caímos na cilada de aparecermos, diante do povo oprimido, como defensores da ordem que condenamos.

Sabidamente, o eixo do poder político no Brasil mudou, e o fenômeno não é de hoje. Seu ponto de referência exemplar é o golpe de 2016 – golpe parlamentar, manobra de cúpula que prescinde de fardados nas ruas e toques de recolher, e pode efetivar-se sem repressão policial. Mas o quadro de hoje não caiu do colo dos deuses: resulta de transformações político-ideológicas fermentadas por largos anos nas bases da sociedade, para as quais não tivemos olhos para ver antes que viessem à tona e explodissem como aluvião que não cessa de crescer – e diante do qual a esquerda, em todos os seus matizes, não cessa de se surpreender. Assustada, recua.

O eixo do poder mudou porque a ordem social que lhe dá vida mudara antes, determinando uma nova correlação de forças que pode consolidar-se se não for bem compreendida para ser bem enfrentada. Esse enfrentamento, porém, depende da capacidade da esquerda de, a partir da construção de um projeto de país contemporâneo com a realidade histórica, construir, na sociedade, uma nova maioria política. Nestes termos, a sustentabilidade do governo, revisto, se torna necessária, e as eleições de 2026 assumem características decisivas – mas não encerram a história toda, pois permanecem tão-só como ponto de partida de um projeto de poder seguidamente desviado pelas distorções impostas pelo eleitoralismo que confunde meio com fim.

O que fazer é um óbvio ululante (aproveitando a expressão grafada por Nelson Rodrigues): fazer política.

Como nos ensinou Marx n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”
No labirinto no qual foi enredado pelas circunstâncias, Lula é um Teseu desamparado; sem o fio de Ariadne – um projeto político claro que fale ao povo – busca saída pedindo ajuda, ou benevolência, ao carcereiro mortal: a elite político-financeira que o sequestrou, e que o detesta. O 1% de rentistas que concentra aproximadamente 48% da riqueza nacional.

É hora de mudar o rumo.
 
***
 
Infâmia no Senado Federal – Enquanto o genocídio perpetrado por Israel e EUA contra os palestinos de Gaza avança sem freios, dizimando homens, mulheres e crianças que não têm a quem recorrer, nem onde se abrigar e nem para onde ir, e enquanto cresce a violência de colonos judeus contra os palestinos na Cisjordânia, o lamentável Senado que aí está teve o desplante de promulgar, no último 25 de junho, a lei que institui o Dia da Amizade Brasil-Israel – iniciativa infeliz do governo Dilma,que Lula não sancionou, mas não vetou. Trata-se de um cuspe na cara de quem sofre, direta ou indiretamente, os efeitos do genocídio palestino, primeira matança do gênero a que a humanidade assiste em tempo real, sob a cumplicidade do que ainda se chama civilização ocidental. O que a sociedade brasileira (por onde é mesmo que ela anda?) fará para compensar a infâmia?

Para não esquecer – Desde o início do genocídio em 2023, as tropas de Israel, com o apoio dos EUA e da OTAN (nomeadamente França, Grã-Bretanha e Alemanha), já mataram algo como 64 mil palestinos (The Lancet). Para escárnio do que resta de dignidade na ordem ocidental, o Estado sionista acusa o Irã invadido de “crime de guerra”.
Coronelismo, enxada e bytes – Na Câmara dos Deputados caminha a passo célere e quase despercebido o GT da Reforma Administrativa. Hegemonizado por despachantes do grande capital, aos quais se somam figuras pitorescas da "direita sem medo", o grupo caminha para elaborar uma proposta de desmonte do Estado e precarização dos serviços públicos, tendo como alvo principal a estabilidade dos servidores, ensaiada na legislação ordinária de 1915 (lei nº 2.924) e consagrada pela Constituição de 1934. Se não for contida, a direita inflada terminará nos levando de volta ao direito colonial.

Com a colaboração de Pedro Amaral

sábado, 7 de junho de 2025

Pequena Crônica - Paz na Terra - 7 de junho de 2025

 Pequena Crônica - Paz na Terra - 7 de junho de 2025




        O silêncio domina os espaços escampos. Há um sol que começa a brilhar e voltar ao seu normal após uma manhã plúmbea e nublada. A semana de trabalho vai chegando ao fim mas ainda há muitas  demandas até lá. Os fantasmas cruzam meu caminho. Há uma garganta urbana que eu preciso transpor. E logo ali vejo o campanário de uma Igreja católica. Não obstante este turbilhão de coisas, passa a bela imagem curvilínea daquela moça não tão bela assim. Lembro da moça da loja de secos e molhados e me é o bastante para rejeitar a moça curvilínea. É tarde e as horas avançam. Eu só queria está em casa cento e três e a moça da loja de secos e molhados.  

sábado, 3 de maio de 2025

Pequena Crônica - Antes das sete - 3 de maio de 2025

 Pequena Crônica - Antes das sete - 3 de maio de 2025



É hoje. O dia de hoje é simplesmente o de hoje. Não deram ainda as sete primeiras badalas do dia e já me encontro na rua. Cumprimentei um sem número de pessoas que cruzaram meu caminho. Mesmo sendo hoje um feriado, as pessoas estão na rua antes da matinal sétima hora. A música. Sou musical. Há uma banda de pos punk germânica que toca em minha plataforma ( outrora era na minha vitrola que tocava). De aperitivo um Martini branco que estava esquecido em minha adega. Somado a tudo isso uma angústia sufocante que eu afogo no copo de vermute. Estou assim desde ontem. Também pudera, a moça da loja de secos e molhados cruzou minha frente numa encruzilhada fatídica. Esnobe e indiferente a tudo ela simplesmente olha com olhar de cima abaixo num ar de superioridade a tudo.

As horas avançam neste joguete eterno do tempo versus existência. Me fito ante um espelho. Me acho velho. O peso da angústia de a pouco vai dirimindo. A imagem soberba da moça da loja de secos e molhados vai se esfumando de minha mente e vai dando lugar a um causo absurdo contado por aquele velho da praça dos pombos. Não detalharei aqui o enredo por ser longo e complexo. As sombras chegam. Os fantasmas se agrupam perto de mim. A embriaguez chega e a playlist muda para sentidos mais joviais. Preciso fugir da escravidão do tempo e da influência dele que pesa sobre mim. Preciso relativizar o tempo. Preciso está acordado antes da seis da manhã todos os dias.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Pequena Crônica - Haverá sinais quando eu estiver de férias - 25 de setembro de 2024


 


Pequena Crônica - Haverá sinais quando eu estiver de férias - 25 de setembro de 2024



Confinado no pequeno cubículo estavam ele e eu. Haviam muitas pessoas na casa mas estávamos protegidos pela aldabra que trancafiou-nos naquele momento. Ele não tirava os olhos libidinosos de minhas carnes adiposas.O homem me desejava e não disfarçava. O degà enfileirava  expressões de duplo sentido sem nenhum rodeio. Eu me esquivava por caminhos nos quais me passava por desentendida.  Os olhos dele me fulminavam e dizia mudamente que me desejava como um alucinado. Quase irracional. Mas ali não podia acontecer nada pois a hospedaria estava cheia de sitiantes. Na pandemia sim, só havia eu e ele, mas o puritanismo monogâmico dele não permitiu que entendesse minhas insinuações. 


Houve uma festa na noite de ontem. Era carraspana, comidas que afetam a saúde dos hipertensos e de outros pacientes. Era também um rol de gentes que saíram de casa para estar à luz da lua. Calor corporal, vento morno, pessoas próximas umas das outras. Hormônios. Gente jovem e eu lá. Seria eu ainda uma pessoa jovem? Onde estão meus hormônios.



Madrugada e eles todos ou quase todos por lá. O culto ao natalício de uma pessoa importante. Elas querem apenas se divertir. Beber no gargalo da garrafa o fogo do álcool que aquela bebida possui.


É sombra e escuridão. A barra horizontal está neste conflito neste momento. A rua está cheia de confetes, garrafas, bitucas de cigarros de toda cor. Com marca de batom ou epitélio de lábios juvenis. As pessoas que estavam naquela pândega transcendental não iriam ser oprimidas pelo trabalho escravizante daquela manhã  já de quinta feira. Todos ali querem permanecer em moto-perpétuo naquele brilho de carrossel da tertúlia. Estão todos verdadeiramente vivos.


sábado, 11 de maio de 2024

Pequena Crônica - Preciso comprar uma roupa nova para mim - 11 de maio de 2024


 

Pequena Crônica - Preciso comprar uma roupa nova para mim - 11 de maio de 2024



Céu em brasa. Há uma penumbra. A barra do amanhecer vem quebrando. (nunca compreendi bem esta expressão). Cena vista e registrada por mim, que perambulo a esmo pelas ruas escampas desta madrugada quase manhã! Ser parte dos atores que protagonizam o amanhecer de um novo dia por estas banda de cá tem sido minha missão nestes últimos dias. Pelo menos até minha relação com Morfeu ande meio arranhada! O vermelho do nascente é um quadro perfeito para uma fotografia. Brasil vem de brasa. Brasa vermelha. Vou coletando situações 

e personagens que cruzam meu caminho e realizam esta epopeia.  Aurora. Ruas inóspitas ainda. Sinto-me meio que o dono do pedaço que é coletivo e cheio de locatários. Há senhoras que praticam suas atividades físicas no derredor do campo santo. Um homem solitário vigia os poucos passantes de sua calçada. Há um zelador de um mercado público que volta de sua missão de abrir as portas daquele estabelecimento comercial. O moço é acompanhado por sua cônjuge que além de lhe ser fiel nos quesitos sentimentais é também fiel na escolta em seu temerário trajeto casa-trabalho-casa. Religiosamente ela o acompanha.


As horas avançam e o comercio de pães e massas começa a funcionar. Na tradicional birosca da Rua do Arisco há um despacho dos produtos. Um dos compradores momentâneos daquele comércio, trava rápido diálogo com o vendedor. Captei que o primeiro falava da necessidade de comprar uma roupa nova para ele. Fiquei imaginando para qual evento aquele simples homem necessitava de vestes mais elaboradas. Teria necessidade de um blazer? Um smoking? Um paletó? Não sei! Sei que suas vestes do dia a dia, são farrapos esmolambados que caracterizam sua modesta personalidade.


As horas avançam e a normalidade do espaço urbano vai tomando forma. Tudo começa a funcionar. O comércio de hortifruti, comércio de bens desnecessários. Cada um sitia seu lugar individual. E eu preciso também entrar no rol daqueles que cumprem suas rotinas diuturnamente. Tenho sono mas a obrigação de mais um dia exige que eu marche para minha obrigação. Tudo normal. Ou dentro daquilo que se estabelece como normalidade. É preciso bater o cartão e respeitar o patrão.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Pequena crônica - 365 - 11 de Maio de 2023

 




Pequena crônica - 365 - 11 de Maio de 2023



Estou na rua. Estou nas ruas desde os primeiros raios de sol no horizonte. Só que agora já estamos no início da tarde. Ruas escampas. Eu como observador do tempo e fiscal  de aleatoriedades  vou colhendo fatos para o memorial dos desinteressados. Eu que amanheci esta jornada na aurora do dia  como uma atividade física, agora observo os jovens espadaúdos que adentram uma academia física que também tem poucos sitiantes a esta hora. No meu andar a ermo, faço contrato de locação com a praça municipal onde fico como hóspede por horas a fio.

Aqui no meu lugar de combate, colho todas as cenas que julguei úteis para este meu dia dentro da abstração do tempo. Logo mais discorrerei  algumas delas.

Outrora, havia por aqui um sem número de pombos que ocupavam as castanholeiras.As aves eram em número elevado. Havia uma senhora que em horas certas vinha alimentar as palomas com milho seco.

Hoje a realidade é outra. Os animais que ali sitiam o espaço são gatos rabugentos e magros que alguém por piedade deixa porções de ração felina. Eu não sou afeito a bichanos, não obstante minha condição respiratória de asmático e também por não endossar  a sociabilidade deles em relação aos domesticadores. Há uma relação muito falsa entre os gatos. Prefiro os vira latas e suas fidelidade canina.

Há outras cenas que se passam ainda no logradouro público. Assisto uma transação comercial onde não há papel moeda envolvida. Não que a negociação não tenha valor monetário, mas porque no escambo mercantil se deu de forma digital e não analógica.

Várias coisas acontecem e eu não consigo concatenar a sequência exata deles e é impossível registrar ou não que não foram. Há sinos que dobram em campanários altos. Há diálogos entre várias pessoa numa balbúrdia sonora impossível de se filtrar algo disto. Algumas pessoas falam comigo palavras ininteligíveis nas quais eu sinalizo concordar para não ter aborrecimento. Lembrei de um conhecido meu de longa data na qual lembrou um fato interessante: ele perguntou se eu mantinha meu alter ego em minhas composições literárias.

A moça da loja de secos e molhados me desconcerta ao passar por aqui cruzando a praça. Ela exibe uma camiseta cinzenta com o numeral cardinal trezentos e sessenta e cinco. Supus que este número tivesse relação com o tempo e fiquei mais desconcertado psicologicamente. Talvez aquele número tivesse afeto ou comiseração, sentimentos totalmente diferentes. Confuso tudo.


Sinais da natureza vindo geograficamente do sudeste indicam episódios de tempestade. Há uma outra tempestade cerebral em mim após toda esta abstração de fatos, números e sentimentos.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Pequena Crônica - Dinheiro - 22 de dezembro de 2022

 




Pequena crônica – O dinheiro – 22 de dezembro de 2022

 

Estando sentado a mesa que sobre ela deitam algumas cédulas de dinheiro, veio a mente uma imagem de outrora que presenciava quando criança. Nas tardes de domingo meu pai e meu tio prestavam contas da rústica sociedade entre eles. Era o momento de contabilizar as perdas e ganhos de uma de semana de trabalhos e transações comercias. Ao canto da sala, numa mesa de madeira, só os dois transacionavam. Ali era um diálogo quase sacro no qual nenhuma outra pessoa poderia se intrometer (nem mesmo minha mãe). E eu como criança, nem entendia nada e estava totalmente reprimido para intervir naquela contenda contábil. Meu genitor e seu irmão empilhavam notas sobre notas, puxavam para um lado um dos montantes, depois iam e viam em debates acalorados na maior parte do tempo. Havia ainda várias lembranças por partes deles das vendas que ficaram fiadas, dos futuros lançamentos no mercado de empreendimentos imediatos.  Assim foram estes dois minúsculos e rústicos comerciantes que fizeram parte de minha infância.

O dinheiro é um papel pintado que tem valor de mercado e economia. O escambo de objetos de maior ou menor valor determina transações mercadológicas. Li certa feita na escola uma crônica de Olavo Bilac sobre o tema e desde lá sou perseguido pelo tema. Bilac finaliza sua epopeia ao citar o rei Midas que se perdeu na sua ambição pelo dinheiro ao tocar tudo e virar ouro, inclusive sua comida que levava a boca. Tenho o livro a Origem do dinheiro do autor austríaco Carl Menger mas eu não li este compêndio por orientação de meu partido, não li nem mesmo para fazer a crítica.

Hoje o papel moeda vai perdendo o espaço e a magia do capital. Em tempos digitais, até o dinheiro é algo virtual. Até mesmo as minúsculas transações de pequenos lanches ou coisa que o equivalha. O capitalismo brutaliza até as relações de dinheiro na quase extinção do papel moeda. Se diminuem os escambos presencias, as trocas e os trocos. O papel dinheiro servia até de papel bilhete para mandar recados e correntes, mensagem cifradas. Comunicação de toda ordem. Vamos ficando cada vez mais mecanizados quando as curtas negociações passam por algoritmos frios nos quais distanciam os seres. Este é o capitalismo.

 


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Pequena Crônica - Tertúlia - 26 de outubro de 2022

 26 de Outubro - Pequena Crônica - Tertúlia





Manhã de um dia qualquer. Dia neutro. Dia cinza. Preciso sair de minha clausura de três ou quatro dias. Minha solidão causa uma angústia desgastante. Minha respiração está opressa neste interregno eremita, mais ainda porque tenho intensificado minha condição de fumante inveterado. No autoexílio na casa de móveis arcaicos resta muito pouco o que fazer além de lê, fumar, comer algo e pouco nas horas incertas e dormir sonos assombrados e cheios de interrupções. Mantenho meus custos para a manutenção de minha existência através de um minguado montepio deixado por meu pai. Sou um dos últimos galhos de uma árvore genealógica que foi bem mais frondosa do que hoje e logo logo serie uma galho a ser podado dessa copa.

Saindo da minha bolha  cosmopolita, vou campear mudamente os limitados espaços citadinos. A esta hora equânime há poucos locatários da urbe, mas há vida. Pulsão de vida. Cenas rotineiras. Um cortejo fúnebre passa na rua do cemitério, o sino da igreja católica dobra pelo finado. Sob o campanário há anacoretas que não cessam de propalar silentemente suas jaculatórias. No lado oposto a praça há um pregão de um vendedor de bugigangas. Há ainda por ali outros sitiantes, vagabundos, vendedores de bilhetes de loterias, mães de santos, pastores e meretrizes. Todos no mesmo espaço. Ao boreal dali ficam as casas comerciais onde os clientes gastam despudoradamente seus surrados numerários. Há ainda o Ratisbona bar, um misto de café e restaurante, onde a esta hora tem apenas dois clientes: um casal de meia idade troca carícia cheio de lascívia como se eles fossem os únicos habitantes de um paraíso inóspito.

As cenas se sucedem, o tempo se gasta. E tudo isso que foi registrado por aqui me deixou chato, enjoado e lasso. Preciso voltar para meu recato, para minha bolha. Quero fugir daquilo tudo. Preciso me recolher ao meu eremitério. Preciso voltar para a penumbra. Está no meu ambiente de ar rarefeito incensado pelo fumo que saem de meus cigarros que se fumam por si só.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Reproduzindo Vinicius de Moraes - Invocação à mulher única

 Após assistir a uma vídeo no qual o excelente escritor infanto-juvenil Pedro Bandeira recitava esta bela peça da Literatura de Vinicius de Moraes, resolvi reproduzir por aqui!





Invocação à mulher única – Vinícius de Moraes


Tu, pássaro – mulher de leite! Tu que carregas as lívidas glândulas do amor acima do sexo infinito
Tu, que perpetuas o desespero humano – alma desolada da noite sobre o frio das águas – tu
Tédio escuro, mal da vida – fonte! jamais… jamais… (que o poema receba as minhas lágrimas!…)
Dei-te um mistério: um ídolo, uma catedral, uma prece são menos reais que três partes sangrentas do meu coração em martírio

E hoje meu corpo nu estilhaça os espelhos e o mal está em mim e a minha carne é aguda
E eu trago crucificadas mil mulheres cuja santidade dependeria apenas de um gesto teu sobre o espaço em harmonia.

Pobre eu! sinto-me tão tu mesma, meu belo cisne, minha bela, bela garça, fêmea
Feita de diamantes e cuja postura lembra um templo adormecido numa velha madrugada de lua…
A minha ascendência de heróis: assassinos, ladrões, estupradores, onanistas – negações do bem: o Antigo Testamento! – a minha descendência

De poetas: puros, selvagens, líricos, inocentes: O Novo Testamento afirmações do bem: dúvida (Dúvida mais fácil que a fé, mais transigente que a esperança, mais oporturna que a caridade Dúvida, madrasta do gênio) – tudo, tudo se esboroa ante a visão do teu ventre púbere, alma do Pai, coração do Filho, carne do Santo Espírito, amém!

Tu, criança! cujo olhar faz crescer os brotos dos sulcos da terra – perpetuação do êxtase
Criatura, mais que nenhuma outra, porque nasceste fecundada pelos astros – mulher! tu que deitas o teu sangue

Quando os lobos uivam e as sereias desacordadas se amontoam pelas praias – mulher!
Mulher que eu amo, criança que amo, ser ignorado, essência perdida num ar de inverno.
Não me deixes morrer!… eu, homem – fruto da terra – eu, homem – fruto da carne
Eu que carrego o peso da tara e me rejubilo, eu que carrego os sinos do sêmen que se rejubilam à carne

Eu que sou um grito perdido no primeiro vazio à procura de um Deus que é o vazio ele mesmo!
Não me deixes partir… – as viagens remontam à vida!… e por que eu partiria se és a vida, se há em ti a viagem muito pura

A viagem do amor que não volta, a que me faz sonhar do mais fundo da minha poesia
Com uma grande extensão de corpo e alma – uma montanha imensa e desdobrada – por onde eu iria caminhando

Até o âmago e iria e beberia da fonte mais doce e me enlanguesceria e dormiria eternamente como uma múmia egípcia

No invólucro da Natureza que és tu mesma, coberto da tua pele que é a minha própria – oh mulher, espécie adorável da poesia eterna!

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Pequena Crônica - Tudo pra Ser Reunido Agora - 25 de Fevereiro de 2022

 


Pequena Crônica – Tudo para ser reunido agora

 

            Manhã de um dia qualquer. Ainda sofrendo as consequências físicas da carraspana da noite passada, mesmo não tendo sido uma pândega das maiores. Despertei hoje acompanhado por uma vontade de perambular por alhures a esmo, rua a rua. A este momento o horizonte pros lados do nascente, está carregado por nuvens plúmbeas e carregadas que denunciam a qualquer momento uma chuva. Mesmo com estes iminentes contratempos, dou início a meu itinerário errante. Nas calçadas das casas por onde passo há poucos sitiantes para esta hora tradicional de tertúlia. Passeio por ruas tortuosas e de pisos irregulares. Meus pés de anatomia imperfeita, sofrem com os impactos causados pelo sobrepeso de meu corpo, mesmo estando os pés sobre proteção de macio calçado. E por estas andanças tenho a companhia de uma vitrola portátil que trago junto ao bolso do meu “curto”. Executado pelo aparelho eletrônico, seleciono para o “convencional” o extraordinário músico Eumir Deodato e sua excelente “World Music” quase inclassificável pela mistura de influências mil da música.

            O jogo segue e o percurso percorrido pelos meus combalidos pés estão cada vez mais aleatórios. Muitas vezes pareço está andando em círculos, quase em moto perpétuo. E neste caos do itinerário, incidentalmente eu circundo a casa da moça da loja de secos e molhados. É uma modesta choupana sem nenhuma arquitetura mais elaborada, luxo ou outros detalhes que chamem a atenção de quem passa por ali indiferente no dia a dia.  É um modesto casebre num recanto de uma tortuosa rua. O frontispício urge melhoramentos. A distância se observa a sala escura e inóspita, ali jaz um varal repleto de roupas recém lavadas. Momentaneamente não surge por ali sinal que há algum locatário do local, parece que todos já saíram pra seus afazeres.

            Agora o tempo avança, e meu caminhar segue a esmo. Percorro ruas, vielas, becos e alamedas. Passo por uma casa de saúde que está bastante movimentada pois estamos num tempo de doenças sazonais. Passo ainda por um suntuoso templo religioso que está sendo preparado para receber logo mais um sem número de anacoretas.  Cruzo caminho de pessoas que me cumprimentam e de chofre respondo maquinalmente um a um. As nuvens que ainda a pouco denunciavam chuva, se esvaíram por todos os cantos e a chuva não veio. Quem domina agora o espaço é um sol que brilha intensamente. O fenômeno é a ordem de todos os dias por aqui. A temperatura sobe rapidamente. Pessoas procuram os filetes de sombras. Até os cachorros procuram guarida na areia úmida da chuva que caiu na noite passada.

            Volto para meu tugúrio e o contador de passos que eu acionei para tal tarefa avisa que eu dei aproximadamente nove mil passos desde o início desta légua tirana! Findo o expediente tendo o corpo tomado por suor. Faz-se necessário imediatamente um asseio demorado. Tudo é verossimilhança, ou quase tudo.